Que desporto temos? Que desporto queremos?

A. Melo de Carvalho

A «qua­li­dade» da prá­tica des­por­tiva de­pende das con­di­ções con­cretas

Porquê uma tão grande pre­o­cu­pação com o des­porto? Na ac­tu­a­li­dade, as crí­ticas a esta ac­ti­vi­dade são cor­rentes, acu­sando-a de fazer parte do pro­cesso ali­e­nador dos in­di­ví­duos em geral, fo­men­ta­dora da vi­o­lência, vi­ciada for­te­mente na cor­rupção, e cons­ti­tuir um ele­mento anti-cul­tural e anti-edu­ca­tivo.

Porém, num sen­tido de­ci­di­da­mente con­trário, tra­di­ci­o­nal­mente o des­porto é con­si­de­rado como uma ac­ti­vi­dade de grande ca­pa­ci­dade edu­ca­tiva, ga­ran­tindo a me­lhoria da saúde dos pra­ti­cantes, a edu­cação do ca­rácter, o de­sen­vol­vi­mento de um vasto nú­mero de ca­pa­ci­dades (desde as qua­li­dades fí­sicas, até ao pro­cesso de so­ci­a­bi­li­zação), cons­ti­tuindo um im­por­tante factor de in­te­gração so­cial e de pre­pa­ração da ju­ven­tude para o em­bate com a vida so­cial mar­cada por uma com­pe­tição feroz.

A con­tra­dição entre as duas cor­rentes de pen­sa­mento aqui sin­te­ti­zadas não pode ser maior. Então em que se fica?

A questão é esta: ne­nhuma delas tem razão na forma como co­loca a sua pers­pec­tiva. É evi­dente que a prá­tica des­por­tiva tem con­sequên­cias vá­rias e va­riá­veis de in­di­víduo para in­di­víduo. To­davia, essas con­sequên­cias não se ex­primem au­to­ma­ti­ca­mente através da prá­tica. Por exemplo: os de­fen­sores da se­gunda pers­pec­tiva con­si­deram que a prá­tica em equipa ga­rante a aqui­sição do pro­cesso co­o­pe­ra­tivo, fre­quen­te­mente apre­sen­tado como jus­ti­fi­cação para a pre­sença da com­pe­tição. Ora, acon­tece que muitos desses pra­ti­cantes in­te­gram grupos de jo­vens que, de forma fre­quen­te­mente bem or­ga­ni­zada (os grupos de ho­o­li­gans), atacam os grupos ri­vais, tra­vando au­tên­ticas ba­ta­lhas e per­pe­trando as mais graves de­sor­dens. Os exem­plos podem mul­ti­plicar-se.

Em re­lação à pri­meira opi­nião, os seus de­fen­sores de­sin­te­gram com­ple­ta­mente a questão do des­porto e suas «do­enças», como fre­quen­te­mente de­signam os fe­nó­menos de vi­o­lência, cor­rupção, do­ping, mer­can­ti­li­zação de­sor­de­nada das ca­rac­te­rís­ticas ge­rais da so­ci­e­dade ac­tual. Na ver­dade, estas «do­enças» são es­sen­ci­al­mente di­fe­rentes da­quelas que ca­rac­te­rizam a vida da so­ci­e­dade em geral?

Ve­jamos: em que se di­fe­rencia a vi­o­lência dos ho­o­li­gans da vi­o­lência fa­mi­liar em que muitas mu­lheres perdem a vida? E a questão das «vi­o­lên­cias» se­guiria por aí fora se ti­ves­semos es­paço, ainda que não se possa ig­norar a vi­o­lência exer­cida nos lo­cais de tra­balho, pela pre­ca­ri­e­dade e pelos des­pe­di­mentos.

Fe­nó­meno ainda mais es­tranho diz res­peito ao do­ping. Este surge com frequência entre os atletas, cau­sando um grande mo­vi­mento de in­dig­nação. Con­tudo, o do­ping é prá­tica fre­quente entre os alunos que vão a exame e, apesar disso ser co­nhe­cido, não se ve­ri­fica ne­nhuma re­acção ao facto.

Quanto à fan­tás­tica mer­can­ti­li­zação que se ve­ri­fica em certos des­portos, como se­pará-la do pro­cesso geral de tudo se trans­formar em ob­jecto de con­sumo mer­cantil, desde a cul­tura e a edu­cação, à saúde e ao tempo livre?

Porém, é im­por­tante tomar em con­si­de­ração que tudo isto se re­fere ao cha­mado «des­porto es­pec­tá­culo», de alto ren­di­mento pro­fis­si­onal, sis­te­ma­ti­ca­mente pro­mo­vido pelos média.

Sem mi­la­gres

A questão é esta: o des­porto não possui ne­nhuma qua­li­dade es­pe­cí­fica em si mesmo. A «qua­li­dade» da sua prá­tica de­pende das con­di­ções con­cretas do am­bi­ente, dos ob­jec­tivos e das formas como é pra­ti­cado. Ne­nhuma dessas qua­li­dades surge au­to­ma­ti­ca­mente da pró­pria prá­tica. Por exemplo, no pro­cesso de for­mação des­por­tiva das cri­anças, ado­les­centes e jo­vens, não se ve­ri­fica ne­nhum pro­cesso au­to­ma­ti­ca­mente edu­ca­tivo. Na ver­dade, não é a prá­tica des­por­tiva que é «mi­la­gro­sa­mente» edu­ca­tiva, mas sim o pro­cesso for­ma­tivo uti­li­zado pelo edu­cador. É este que ga­rante a uti­li­zação ver­da­dei­ra­mente edu­ca­tiva das enormes po­ten­ci­a­li­dades que o des­porto trans­porta em si mesmo.

Isto impõe a in­dis­pen­sável pre­sença do edu­cador de­vi­da­mente for­mado, na me­dida em que é sobre ele que recai a res­pon­sa­bi­li­dade da va­li­dade edu­ca­tiva dos efeitos da prá­tica do des­porto.

O que cons­titui um dos as­pectos mais im­por­tantes que in­te­gram os dois pro­blemas fun­da­men­tais do des­porto por­tu­guês.




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