A mentira

Gustavo Carneiro

Des­culpar-nos-à o leitor por vol­tarmos à Ci­meira da NATO, pas­sada que está já uma se­mana sobre a sua con­clusão. Fa­zemo-lo não para ana­lisar re­sul­tados e an­te­cipar con­sequên­cias, mas tão só para des­montar aquela que é uma men­tira com mais de sete dé­cadas, apre­goada em força nos úl­timos meses: a que afirma que a exis­tência (e con­tínua ex­pansão) da NATO tem al­guma coisa a ver com de­mo­cracia. Não tem hoje, como nunca teve.

Al­guns bem se con­torcem – e, com as suas co­lunas ver­te­brais, à pró­pria re­a­li­dade – para con­ferir à NATO algum destes atri­butos: é a or­ga­ni­zação de­fen­siva das de­mo­cra­cias contra as au­to­cra­cias, dizem-nos agora, numa re­cri­ação não par­ti­cu­lar­mente cri­a­tiva do mito fun­dador da ali­ança mi­litar do mundo livre.

Re­cu­emos então a esse Abril de 1949. No res­trito nú­cleo de 12 Es­tados que cons­ti­tuíram a Or­ga­ni­zação do Tra­tado do Atlân­tico Norte, lá es­tava Por­tugal – com a PIDE, a cen­sura, o Tar­rafal, as tor­turas, os as­sas­si­natos. Mas também a França, que por essa al­tura dava uso à gui­lho­tina contra os pa­tri­otas vi­et­na­mitas, e o Reino Unido, que na Grécia es­ma­gava as forças an­ti­fas­cistas e im­punha o «seu» go­verno pela força. Todos re­gres­sa­riam em breve aos tra­di­ci­o­nais mas­sa­cres: na Ar­gélia, no Quénia, em São Tomé e Prín­cipe.

Mais ou menos por esta al­tura, poucos anos após terem lan­çado o ho­lo­causto nu­clear sobre Hi­ro­xima e Na­ga­sáqui, os Es­tados Unidos ame­a­çavam re­criá-lo em ter­ri­tório so­vié­tico, chinês e co­reano. Du­rante a cha­mada guerra da Co­reia, os bom­bar­de­a­mentos norte-ame­ri­canos sobre Pyongyang só ces­saram… quando já quase não existia Pyongyang. An­te­ci­pava-se assim o que o ge­neral Curtis Le May ver­ba­li­zaria mais tarde, re­la­ti­va­mente ao Vi­et­name: temos de bom­bardeá-los até que voltem à Idade da Pedra.

Só com muita cri­a­ti­vi­dade e pouca ver­gonha se pode também en­qua­drar numa qual­quer cru­zada pela de­mo­cracia tantos ou­tros feitos sub­se­quentes da NATO: o golpe dos co­ro­néis, na Grécia; a in­vasão turca do norte de Chipre; a Rede Gládio e o ter­ro­rismo («negro» ou «ver­melho») em Itália; as ma­no­bras mi­li­tares in­ti­mi­da­tó­rias ao largo da costa por­tu­guesa em plena Re­vo­lução de Abril; as agres­sões à Ju­gos­lávia, ao Afe­ga­nistão, ao Iraque, à Líbia.

Por mais voltas que se dê, a re­a­li­dade impõe-se: a NATO é um ins­tru­mento do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano des­ti­nado a as­se­gurar – e a es­tender tanto quanto pos­sível – o seu do­mínio, sub­me­tendo a esse fim os pró­prios ali­ados. Foi o pró­prio lorde Has­tings Ismay, pri­meiro Se­cre­tário-geral, a re­co­nhecê-lo, quando ex­plicou os ob­jec­tivos da NATO, re­la­ti­va­mente à Eu­ropa: «manter os ame­ri­canos dentro, os russos fora e os ale­mães em baixo.» Nem uma pa­lavra, então, sobre de­mo­cracia.

Re­co­nheça-se a sin­ce­ri­dade. Ou o lapso.




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