Três notas e um míssil

Gustavo Carneiro

O recente episódio do míssil-russo-que-caiu-na-Polónia-mas-afinal-era-ucraniano, que animou as hostes mediáticas durante uns dias, não deve ser encarado com ligeireza, sendo útil que suscitasse algumas reflexões. Aqui ficam três.

1. Entre os que – dizem-nos – são nossos «amigos» e «aliados», há quem sonhe com a Terceira Guerra Mundial ou, pelo menos, não hesite em colocar a Humanidade perante essa terrível perspectiva.

Tinha o lamentável incidente acabado de acontecer e havia quem não tivesse quaisquer dúvidas acerca da origem do disparo e da sua motivação, bem como do que se deveria seguir: a Rússia acabara de atacar «território da NATO», exultaram, e só havia uma coisa a fazer – invocar o artigo 5.º e, com enorme probabilidade, colocar a NATO em guerra directa e aberta contra a Rússia.

Insanidade? Provocação? Estratégia negocial? Para o caso pouco importa.

2. A cobertura mediática do incidente diz muito acerca dos mecanismos e redes de poder que regem as grandes cadeias mediáticas.

Quando tanto se opõe à «propaganda russa» a «informação livre» do chamado Ocidente, é revelador que só se tenha abandonado a tese do míssil russo depois do presidente norte-americano, determinado em prosseguir a – lucrativa – estratégia de guerra prolongada, ter considerado «improvável» que o disparo tivesse essa proveniência: o que motivou a correcção de uma notícia falsa, e rapidamente disseminada, não foi o estudo, o exame de factos e o cruzamento de fontes, mas a indicação de qual era naquele momento a verdade oficial.

Para além de mostrar o tipo de jornalismo (chamemos-lhe assim) que por aí se faz, este episódio constitui uma preciosa lição acerca do modo como se constroem as narrativas.

3. Tinha razão o PCP naquilo que escreveu no seu comunicado de 24 de Fevereiro, o tal que tanta tinta fez correr.

Nele, apelava a uma «urgente desescalada do conflito, à instauração de um cessar-fogo e à abertura de uma via negocial», primeiros e indispensáveis passos de um processo de diálogo mais vasto: por uma solução política para o conflito; pela resposta aos problemas de segurança colectiva na Europa; pelo cumprimento dos princípios da Carta da ONU e da Acta Final da Conferência de Helsínquia.

O que aconteceu é sabido: milhares de milhões em armamento (algum dele sabe-se lá onde e em que mãos se encontra); novo alargamento da NATO à vista; crescente dependência da Europa face aos EUA; aumento da pobreza e das desigualdades em resultado das sanções; nenhuma abertura a negociações; momentos de perigosa escalada militar. E tanto sofrimento e destruição…

Mais cedo ou mais tarde, o caminho apontado pelo PCP – e por tantos outros por esse mundo fora – acabará por se impor. lutemos para que seja o quanto antes




Mais artigos de: Opinião

Instigadores da guerra

Tal como se verificou em todas as guerras – da Jugoslávia à Síria –, que com êxtase apoiou, o Parlamento Europeu, ou melhor, a maioria dos deputados que integram os seus grupos parlamentares – que têm, no essencial, sustentado o rumo da União Europeia e as suas políticas –, estão de novo na dianteira do suporte à...

Carro vassoura

No âmbito da discussão e aprovação do OE para 2023, Luis Montenegro, sem nenhuma ideia de fundo verdadeiramente alternativa que pudesse contrapor à proposta do PS, numa tirada de raro rasgo político, lá voltou a cair numa das suas contradições insanáveis, ao tentar apresentar-se como oposição à própria essência da...

Como se brinca em Portugal?

A Escola Superior de Educação de Coimbra, o Instituto de Apoio à Criança e o site Estrelas e Ouriços realizaram, pela segunda vez, um inquérito a pais sobre a forma como as crianças até aos dez anos brincam. O primeiro tinha sido realizado em 2018 e as conclusões do segundo foram apresentadas no dia 24. Apesar dos 1600...

A exploração

Somos obrigados a voltar ao tema da imigração e das condições de escravatura em que muitos deles se encontram, não tanto pela operação policial que levou à detenção de mais de três dezenas de pessoas, mas por aquilo que dela decorre. Em primeiro lugar temos de insistir na perplexidade que aqui já registámos em duas...