Cantar Abril (desde) sempre

Manuel Pires da Rocha

Aquilo que se ouve outra vez é o canto mobilizado

Haverá quem julgue que a massa avassaladora das play-list das rádios comerciais e as horas de entretenimento musical televisivo, são a garantia de imposição de «convicções» que, também no caso da música, se ocupam da reescrita da História. E haverá quem vaticine que, para além do mercado e respectivo mecanismo de selecção de «valor», tudo o que ousar existir, mesmo que de música se trate, não tem como medrar. No entanto, e para referir apenas um caso bem antigo, por muito poderosas que tenham sido as marchas do exército francês que afogou a Comuna de Paris de 1871, o que chegou aos nossos dias foi mesmo Le Temps de Cerises – banda sonora de uma nova estação da consciência de classe, que traria à História da Humanidade concretizações e vontades que vão desde a jornada de oito horas aos direitos das mulheres.

A música, por razões que hão de ser as do encantamento, vem revelando um valor que não se enquadra nas regras de cotação bolsista nem sucumbe à pressão das audiências. A música é um produto da História sendo, por isso mesmo, instrumento da luta de classes. Proprietária de meios colossais, a classe dominante usa o poder das chamadas indústrias criativas para replicar modelos de alienação, presentes nos diversos planos da sociedade capitalista, em que a música é uma importante ferramenta de produção de alheamento e conformação. Do outro lado, já em 1946, Fernando Lopes-Graça deixaria escrito que «(…) através do canto, [a música] pode viver verdadeiramente e agir a fundo sobre a sensibilidade, estimulando a acção»i. Dava-se conta avisada, afinal, do que viria a ser o papel do protesto cantado na luta antifascista, em que José Afonso e Adriano Correia de Oliveira viriam a responder por obras de grande qualidade, num movimento que envolveu um vasto elenco de músicos e poetas.

A Revolução de Abril traria para a luz do dia aquelas «velhas» canções, acrescentando a esse belo reportório a música da tradição oral que Michel Giacometti (e poucos mais) registou, e o fascismo tinha encarcerado. Das notícias que aqueles tempos nos dão, percebem-se grandes mudanças no ambiente musical mediático, até então dominado pela pasta sonora do nacional-cançonetismo, pontualmente inquietada por um habilidoso Zip-Zip ou um poema intrometido no Festival da Canção. De repente – no de-repente que é o tempo revolucionário – a canção de protesto entra na antena radiofónica e no plateau televisivo, somando-se-lhe novas formas de afixar canções no dia-a-dia.


Cantar de novo

Quase 50 anos após a Revolução de Abril, sucedem-se as lutas contra o empobrecimento e pela recuperação de direitos que são conquistas revolucionárias. O ambiente mediático é de silenciamento dos protestos e das canções que lhe dão voz. Mas, assim mesmo, Dino D’ Santiago insiste em denunciar os que «Dizem: preto vai para a tua terra / Sai daqui que não és ninguém»; os Linda Martini, evocando o poema de Martin Niemöller (primeiro levaram os comunistas…), perguntam se «Por cada braço em riste / Será que te riste / Ou levaste a sério?»; o Cante alentejano proclama, por interposta Segue-me À Capela, «Se eu for presa por cantar/ não calarei a garganta. / Eu sou como o passarinho / que até na gaiola canta»; Capicua adverte: «Ouve o que eu te digo, / Vou-te contar um segredo, / É muito lucrativo que o mundo tenha medo»; A Garota Não declara (cantando as palavras de Miguel Tiago e de João Monge) que «Podem decretar o fim da arte / - é como decretar o fim da chuva. / Há sempre alguém que sonha em qualquer parte, / e a nossa voz nunca será viúva».

Aquilo que se ouve é, outra vez, o canto mobilizado para ser aquela voz colectiva, «que se pode verificar através de toda a História, nos períodos em que as consciências se acham abaladas e os homens sentem a necessidade de comungar e de se fortalecer num mesmo ideal»ii. É Abril Sempre a fazer-se ouvir.

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iFernando Lopes-Graça. Prefácio de «Marchas, Danças e Canções» (Lisboa: Seara Nova, 1946)

iiIdem, ibidem.




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