Os profissionais fazem filmes como amadores

Marta Pinho Alves

Há uma relação entre o aumento da representação do amadorismo e as transformações tecnológicas

Marie-Thèrese Journout estuda os modos de representação do cinema e do cineasta amador no contexto do cinema de ficção comercial. Através da análise de um vasto corpus que acompanha a história do cinema desde a década de 1920 até recentemente, a autora conclui que, embora as alusões ao amadorismo tenham estado, desde sempre, presentes no cinema profissional, estas tornaram-se contemporaneamente muito mais frequentes. Journout mostra que, enquanto entre 1928 e 1978, ou seja, num período de cinquenta anos, esta manifestação pôde ser identificada em cerca de quarenta títulos, entre 1978 e 1989, num período que representa cerca de um quinto do anterior, o mesmo número de títulos pôde ser encontrado. Este crescimento acentuado mais do que duplica na década seguinte, em que a autora detecta a existência de 110 títulos com essas características, e continua a verificar-se entre 1999 e 2010, período para o qual são identificados 150 filmes.

Perante os dados apresentados é possível estabelecer um nexo causal entre o aumento da representação do amadorismo, e as transformações tecnológicas observadas no domínio dos materiais de produção cinemática destinados a amadores. O primeiro aumento corresponde ao período de expansão da disponibilização do vídeo analógico para contexto doméstico; o segundo ao desenvolvimento, para os mesmos destinatários, de equipamento de vídeo analógico de superior qualidade e ao surgimento dos primeiros equipamentos de registo e edição digital; finalmente, o que corresponde à entrada do novo século e primeira década do século XXI, à sofisticação desses equipamentos digitais e o advento da web 2.0 e das suas plataformas de partilha de conteúdos.

Assim, o aumento da acessibilidade aos materiais de produção amadora e da capacidade de produção dos seus utilizadores, combinada com a ubiquidade e imediaticidade da presença e circulação de imagens, criou um maior acolhimento desse tipo de registos. Neste quadro, Journout refere a plena aceitação pelo cinema profissional dos modos próprios associados ao cinema amador, visível «na crescente tendência dos realizadores [profissionais] para evocar, sem complexos, a referência ao cinema amador a propósito dos modos narrativos ou das características da imagem, mas, sobretudo, na propensão actual dos filmes para aplicar essa matriz estética, quer nos filmes de entretenimento (...) quer nos autobiográficos».

Muito em voga em Hollywood desde o início do século, em particular legitimados pelo sucesso de bilheteira de O Projeto de Blair Witch (1998), estão os filmes integráveis no estilo found footage, designação que serviu para cunhar um novo género cinematográfico no seio da indústria. O conceito que significa, literalmente, registos encontrados – relacionado com outro do campo artístico, object trouvé –, descreve uma modalidade cinematográfica na qual material filmado previamente, resgatado de fontes diversas pelo seu autor original ou outros, é recombinado e reeditado para produzir novos significados. Neste quadro inserem-se obras provenientes do campo artístico e experimental, como as compilações cinematográficas e cinecolagens de Bruce Connor, Craig Baldwin, Richard Fung, Péter Forgács, Ken Jacobs, Guy Debord ou Harun Farocki.

No entanto, o que tem sido dominantemente reconhecido como pertencente ao género found footage são os filmes que emulam, com objetivos ficcionais, imagens amadoras registadas pelos protagonistas da história. Nestes filmes, a maior parte dos acontecimentos são mostrados pela perspectiva de uma ou mais personagens. A filmagem pode ser efectuada pelos próprios actores e a mesma assemelha-se a registos amadores com câmara manejada à mão e iluminação deficitária, além de baixa resolução, com o objetivo de simular realismo. Apesar de simularem os resultados da técnica amadora, estes filmes são elaborados com equipamentos profissionais de elevada performance e qualidade.




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