A guerra vista por Rossellini

Sérgio Dias Branco

Op­pe­nheimer (2023), di­ri­gido por Ch­ris­topher Nolan, não é o único filme em cartaz nas salas de ci­nema que aborda a de­vas­tação da guerra. A Se­gunda Guerra Mun­dial, em par­ti­cular, tem sido um tema ci­ne­ma­to­grá­fico re­cor­rente que en­cerra muitas ad­ver­tên­cias sobre a ne­ces­si­dade im­pe­riosa da paz, contra a im­po­sição im­pe­ri­a­lista da guerra. São en­si­na­mentos sis­te­ma­ti­ca­mente ig­no­rados ou apa­gados neste tempo de triunfo in­qui­e­tante da ló­gica da guerra.

Em boa hora a Me­deia Filmes de­cidiu exibir um ciclo de­di­cado à obra do ci­ne­asta ita­liano Ro­berto Ros­sel­lini, com có­pias di­gi­tais res­tau­radas, de 3 a 27 de Agosto. Entre as obras que com­põem o ciclo, contam-se as três que cons­ti­tuem a cha­mada «tri­logia da guerra»: Roma, Ci­dade Aberta (Roma, città aperta, 1945), Paisà – Li­ber­tação (Paisà, 1946), e Ale­manha, Ano Zero (Ger­mania anno zero, 1948). Esta tri­logia de Ros­sel­lini é um marco na his­tória do ci­nema e a mais con­sis­tente ar­ti­cu­lação do neo-re­a­lismo ita­liano num con­junto fíl­mico. Como ve­remos, os três filmes ofe­recem focos di­fe­rentes do con­flito mun­dial e contêm ele­mentos fun­da­men­tais da es­té­tica neo-re­a­lista.

Ros­sel­lini foi uma fi­gura-chave do ci­nema mo­derno, desde logo como um dos cri­a­dores do neo-re­a­lismo ita­liano, uma nova e ra­dical pro­posta es­té­tica que chegou aos ecrãs antes e de­pois da Se­gunda Grande Guerra. Para o crí­tico francês André Bazin, teó­rico do mo­vi­mento, é como se a si­tu­ação fil­mada dei­xasse uma marca viva na imagem. Daí ele usar a ex­pressão «imagem-facto», que cor­res­ponde à ex­pe­ri­ência de uma fatia da re­a­li­dade no e pelo ci­nema, na qual nada está de­ter­mi­nado à par­tida, dei­xando a au­di­ência numa po­sição de não saber o que es­perar. A tri­logia da guerra firmou Ros­sel­lini como um dos grandes au­tores do ci­nema eu­ropeu.

Roma, Ci­dade Aberta centra-se na ocu­pação de Roma pelas forças nazis. Entre as vá­rias per­so­na­gens, des­tacam-se Luigi Fer­raris (Mar­cello Pa­gliero), co­mu­nista com ta­refas de co­or­de­nação na re­sis­tência an­ti­fas­cista ro­mana, Pina (Anna Mag­nani), co­ra­josa com­pa­nheira de Luigi, e o padre Pi­etro Pel­le­grini (Aldo Fa­brizi), co­la­bo­rador muito ac­tivo da re­sis­tência. A Ges­tapo cap­tura o sa­cer­dote ca­tó­lico e sub­mete-o a in­ter­ro­ga­tó­rios e chan­ta­gens para o levar à traição, mas sem su­cesso, o que lhe traça o des­tino que ca­lhou também a Luigi. A força deste filme está no cru­za­mento de his­tó­rias com uma grande den­si­dade, mu­dando abrup­ta­mente de tom de forma a re­flectir a in­cons­tância da vida num quo­ti­diano de guerra. Venceu o Grande Prémio do Fes­tival de Cannes em 1946.

Paisà – Li­ber­tação di­vide-se em seis epi­só­dios, cada um pas­sado numa frente da guerra. Neste amplo re­trato cabem muitas si­tu­a­ções, nas quais o tempo se de­sen­rola de modo im­pla­cável: da ami­zade entre uma ra­pa­riga si­ci­liana e um sol­dado ame­ri­cano à fe­ro­ci­dade im­pi­e­dosa do Exér­cito Nazi, pas­sando por uma dis­cussão te­o­ló­gica entre um ca­tó­lico, um pro­tes­tante, um judeu, e um grupo de monges fran­cis­canos nos Ape­ninos Emi­li­anos. Foi ga­lar­doado com uma Menção Es­pe­cial do Prémio In­ter­na­ci­onal da Crí­tica no Fes­tival de Ve­neza em 1946.

Ale­manha, Ano Zero segue Ed­mund Köhler (Ed­mund Mo­es­chke), um rapaz que tenta so­bre­viver e ajudar a fa­mília na Berlim des­truída pela guerra e li­ber­tada pelo Exér­cito Ver­melho. Ed­mund cruza-se com um an­tigo pro­fessor, En­ning (Erich Gühne), a quem pede ajuda, para mais tarde per­ceber que nele per­siste a bár­bara men­ta­li­dade nazi da «lei do mais forte». É uma obra que co­loca quem a vê na po­sição de tes­te­munha de uma tra­gédia lan­ci­nante. Venceu o Grande Prémio no Fes­tival de Lo­carno em 1948.

As datas e ho­rá­rios de exi­bição no Ci­nema Me­deia Nimas em Lisboa que ainda restam são as se­guintes: Paisà – Li­ber­tação (dia 19, às 13h), Ale­manha, Ano Zero (dia 19, às 15h30, dia 27, às 13h30), e Roma, Ci­dade Aberta (dia 24, às 15h).

 



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