Denunciar com arte

Manuel Augusto Araújo

«Uma de­núncia co­ra­josa da ocu­pação ilegal do ter­ri­tório pa­les­ti­niano pelo Es­tado de Is­rael»

Nas artes vi­suais con­tem­po­râ­neas tudo tem sido per­mi­tido, in­cluindo o fa­moso «seja lá o que isso for», o que mas­cara a fri­vo­li­dade do­mi­nante em que a crí­tica de arte é pra­ti­ca­mente ine­xis­tente, re­du­zindo-se a bulas de um nicho de mer­cado dos ob­jectos de luxo, que privou a arte da sua função crí­tica so­cial, po­lí­tica, ide­o­ló­gica e es­té­tica o que foi e é in­su­flado por uma tur­ba­multa de co­mis­sá­rios pe­ritos nas vul­ga­ri­dades do kitsch e da moda, con­tro­la­dores das cen­trais de com­pras onde se en­chem os car­ri­nhos dos ad­qui­rentes de pro­dutos por eles pré-se­lec­ci­o­nados. A arte é assim um pro­duto abs­tracto dis­so­ciado das suas con­di­ções de pro­dução es­pe­cí­ficas e das con­di­ções de vida em que se produz, em que os seus ob­jec­tivos ime­di­atos são con­tro­lados pelas opacas va­riá­veis da bolsa de va­lores em que o di­nheiro é forma e fim, um pro­cesso em que a ali­e­nação, traço do­mi­nante da so­ci­e­dade con­tem­po­rânea, se apre­senta em todo o seu es­plendor.

Nesse de­serto, em que as artes e as le­tras dei­xaram de in­ter­pretar e de in­ventar o mundo, são ra­rís­simas as pe­dradas nesse pân­tano que por vezes in­correm no risco já an­tigo do con­teúdo se so­brepor à forma e, num es­tado final e de­ca­dente, a po­lí­tica co­mandar a arte com os ví­cios de todos co­nhe­cidos e por de­mais de­ba­tidos que têm sido uti­li­zados em moldes en­vi­e­sados e pouco sé­rios para jus­ti­ficar uma arte pela arte con­ta­mi­nada por uma es­té­tica-mer­ca­doria de­nun­ciada por Walter Ben­jamin como prá­tica fas­cista.

É neste con­texto que se in­sere a ex­po­sição de Rita An­drade Iden­tity & Land, que re­sulta de ex­pe­ri­ên­cias vi­ven­ci­adas numa vi­agem que fez à Pa­les­tina, que é uma de­núncia co­ra­josa da ocu­pação ilegal do ter­ri­tório pa­lestiniano pelo Es­tado de Is­rael que o con­tinua a ocupar e a su­jeitar às mai­ores bru­ta­li­dades contra todas as re­so­lu­ções da ONU, o si­lêncio cúm­plice, as mais mi­se­rá­veis e fracas de­nún­cias do es­tado de sítio im­posto por esse país, um exer­cício hi­pó­crita e cí­nico em que se es­pe­ci­a­lizou o au­to­pro­cla­mado jardim oci­dental de Bor­rell, tenor rasca de uma ope­reta pimba.

Diz a ar­tista que «a arte é uma forma não vi­o­lenta de me ex­pressar, de es­pa­lhar uma men­sagem, e de fazer uma in­ter­venção. Eu acre­dito que a arte pode ter uma im­por­tante função na trans­for­mação so­cial, e eu es­pero con­se­guir fazer isso mesmo». Trans­mite isso com grande saber ofi­cinal, agudo apu­ra­mento es­té­tico. Mesmo as mais pa­cí­ficas ima­gens são um grito contra a bru­ta­li­dade de um quo­ti­diano im­posto ao povo pa­les­ti­niano pelo poder ter­ro­rista si­o­nista que co­bar­de­mente ex­plora o ho­lo­causto do povo judeu pelos nazis de que foram cúm­plices e de que são hoje os seus mais le­gí­timos her­deiros.

Numa das telas uma mu­lher de lenço branco abraça uma oli­veira, uma imagem se­rena para muito nos de­sas­sos­segar, um alerta que soa em todos os si­lên­cios destas telas que trans­mitem as an­gús­tias e as re­voltas de um povo mar­ti­ri­zado.

 

Iden­tity & Land, de Rita An­drade, na Fa­cul­dade de Belas-Artes de Lisboa até dia 26 de Agosto, de 2.ª feira a sá­bado das 11 às 19h00.




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