A Selva, ainda, ou a tremenda caminhada que continua

Jorge Feliciano

Este es­pec­tá­culo de Cláudia Dias parte da obra A Selva, de Fer­reira de Castro

De­pois de Sete Anos, Sete Peças e Sete Anos, Sete Es­colas, dois pro­jectos de cri­ação e for­mação ar­tís­ticas postos em prá­tica pa­ra­le­la­mente, Cláudia Dias lança-se agora noutro mi­nu­cioso plano de tra­balho, desta vez tra­çado para dez anos.

Du­rante este tempo a co­reó­grafa e in­tér­prete irá tra­ba­lhar A Co­lecção do Meu Pai – assim se chama o ciclo. Mer­gu­lhando na bi­bli­o­teca do seu pai, An­selmo Dias, for­mada por uma mai­oria de obras de au­tores neo-re­a­listas, Cláudia Dias par­tirá rumo a cinco novos portos, que é como quem diz cinco novas peças, ou, como ela co­loca, um ciclo de cri­ação em cinco ca­pí­tulos.

Uma Tre­menda Ca­mi­nhada, o pri­meiro ca­pí­tulo, es­treou no pas­sado dia 4 de No­vembro, no Au­di­tório do Fórum Cul­tural do Seixal, tendo como porto de par­tida a obra de Fer­reira de Castro, A Selva. A frase «uma tre­menda ca­mi­nhada dos de­ser­dados ao longo dos sé­culos», ins­crita no pre­fácio à obra, es­ta­be­lece a rota dessa vi­agem.

É de uma vi­agem de facto que se trata, uma tre­menda vi­agem, por sé­culos de mi­gração for­çada, como acon­teceu a 24 mi­lhões de afri­canos du­rante 350 anos, rap­tados das suas terras e ven­didos para tra­balho es­cravo para o outro lado do Oceano Atlân­tico. Ou da mi­gração dos por­tu­gueses e tantos ou­tros eu­ro­peus, no sé­culo XIX e ao longo do sé­culo XX, atra­ves­sando o mesmo Oceano em busca de uma vida me­lhor que os re­ti­rasse da mi­séria e da fome. Ou hoje, quando tantos emi­grantes, que fu­gindo da po­breza e/​ou da guerra, en­con­tram de­ma­si­adas vezes no el­do­rado eu­ropeu a ex­plo­ração sem travão da sua força de tra­balho. Ser­vindo de pre­texto para au­mentar cargas ho­rá­rias e baixar os sa­lá­rios ao total dos tra­ba­lha­dores, os tra­ba­lha­dores emi­grantes são ins­tru­men­ta­li­zados dessa forma pelos pa­trões que, esses sim, en­con­tram aqui «o ouro», os enormes fi­lões de lucro ex­traído do tra­balho al­ta­mente ex­plo­rado do con­junto do pro­le­ta­riado.

O dis­po­si­tivo cé­nico en­contra na pa­lavra pro­jec­tada em tela de grande di­mensão, a nar­ração que não per­mite aos mo­vi­mentos das in­tér­pretes cor­rerem qual­quer risco de caírem na abs­tração. É uma dança que sabe o que quer e do que fala. Desta feita, a co­reó­grafa en­grossou o grupo de cúm­plices cha­mando para cena três jo­vens in­tér­pretes, Be­a­triz Ro­dri­gues, Maya de Al­bu­querque e Vic­tória Bem­fica – que as­sinam também a peça en­quanto co-cri­a­doras –, e os mú­sicos Afonso Do­rido, Graça Car­valho e Ruca La­cerda, o trio res­pon­sável pela mú­sica ori­ginal to­cada ao vivo. Não es­tando em cena, a peça conta ainda com mais de uma de­zena de co­la­bo­ra­ções em di­versas áreas, das quais des­ta­camos Karas e João Mi­guel Fon­seca pela lon­ge­vi­dade e so­lidez no acom­pa­nha­mento do per­curso ar­tís­tico de Cláudia Dias. São corpos, vozes e ex­pe­ri­ên­cias que se juntam para re­tomar uma questão cen­tral do tra­balho da ar­tista – o cru­za­mento entre a his­tória in­di­vi­dual e a his­tória co­le­tiva.

Par­tindo da re­lação de afecto com o seu pai, An­selmo Dias, e da co­lecção de li­vros que ele agregou e que Cláudia Dias trata como «a irmã mais velha», este ciclo que agora se inicia é também uma ho­me­nagem ao neo-re­a­lismo e aos seus cons­tru­tores. Uma ho­me­nagem no me­lhor dos sen­tidos: vin­cu­lando o seu tes­te­munho no pre­sente e pro­jec­tando-o no fu­turo, acres­cen­tando novos portos e novos rumos à na­ve­gação por esse grande Oceano que é a his­tória da luta dos povos por um pla­neta sem amos. Luta onde a arte tem também um papel a cum­prir, é sempre bom lem­brar.




Mais artigos de: Argumentos