O cemitério com arame farpado

António Santos

É co­nhe­cido como Ce­mi­tério da Con­fe­de­ração, mas na re­a­li­dade chama-se Parque Shelby – em ho­me­nagem a Jo­seph Shelby, o ge­neral da Con­fe­de­ração que, no epí­logo da Guerra Civil Ame­ri­cana de 1861-1865, fugiu para o Mé­xico cru­zando o Rio Grande. Vol­vidos 160 anos, o parque do Texas está ema­ra­nhado em arame la­mi­nado (uma versão mais letal de arame far­pado) e trans­formou-se no epi­centro da maior crise cons­ti­tu­ci­onal vi­vida pelos EUA desde a guerra civil. Mas desta vez não é a con­fe­de­ração que se ar­risca a morrer em Shelby.

Há duas se­manas, uma mu­lher e duas cri­anças que ten­tavam atra­vessar o Rio Grande, no Parque Shelby, co­me­çaram a afogar-se. Como quase três mi­lhões de imi­grantes em 2023, fa­ziam o per­curso in­verso de Jo­seph Shelby: es­ca­pando das mi­sé­rias e das vi­o­lên­cias que o im­pe­ri­a­lismo fo­menta em di­recção aos EUA. A Pa­trulha de Fron­teira, a po­lícia fe­deral res­pon­sável pela se­gu­rança das fron­teiras, as­sistiu ao afo­ga­mento, mas não pôde salvar a fa­mília: desde Ou­tubro que a Guarda Na­ci­onal do Texas, as forças ar­madas co­man­dadas pelo Es­tado, não per­mitem que as forças fe­de­rais acedam à fron­teira.

A crise tem-se agra­vado pro­gres­si­va­mente desde 2011, quando o Texas deu início à Ope­ração Es­trela So­li­tária, um pro­grama para dotar o Es­tado de uma po­lí­tica mi­gra­tória pró­pria, em de­safio à cons­ti­tuição de 1787 que ex­pli­cita ser essa uma com­pe­tência ex­clu­siva do go­verno fe­deral.

Para atro­pelar a cons­ti­tuição, o go­ver­nador re­pu­bli­cano do Texas, Greg Abbot, alega auto-de­fesa pe­rante uma «in­vasão» de imi­grantes, assim um ar­tigo da Cons­ti­tuição que per­mite que, em casos de in­vasão real, os Es­tados possam fazer a guerra. A única guerra, con­tudo, é contra a ad­mi­nis­tração Biden: Abbot tomou con­trolo do parque Shelby e pre­en­cheu esses quatro qui­ló­me­tros de fron­teira com 70 000 rolos de arame la­mi­nado. Quando a Pa­trulha de Fron­teira re­moveu sec­ções de arame, em Ou­tubro, o Es­tado do Texas pro­cessou o go­verno fe­deral. Em pri­meira ins­tância, um tri­bunal deu razão ao Texas, mas o Su­premo Tri­bunal acabou por de­ferir o re­curso in­ter­posto pela Casa Branca.

A res­posta de Abbot ao Su­premo foi um ver­da­deiro tremor-de-terra cons­ti­tu­ci­onal: o go­ver­nador do Texas acusa o go­verno fe­deral de ter ras­gado o «pacto» com os Es­tados. A «Te­oria do Pacto» é a in­ter­pre­tação cons­ti­tu­ci­onal que, aquando da guerra civil de 1861, foi usada pelos con­fe­de­rados para jus­ti­fi­carem a se­cessão dos EUA e pre­ser­varem a es­cra­va­tura. Es­sen­ci­al­mente, ar­gu­menta que os Es­tados estão do­tados de so­be­rania para «anu­larem» leis fe­de­rais in­justas. O Texas está assim a in­vocar a mesma te­oria ju­rí­dica que no pas­sado de­sen­ca­deou a Guerra Civil para de­sa­fiar as duas mais im­por­tantes ins­ti­tui­ções fe­de­rais: a Casa Branca e o Su­premo Tri­bunal. Numa carta pú­blica, 25 ou­tros go­ver­na­dores re­pu­bli­canos, deram o seu apoio ao Texas. Vá­rios, acon­se­lhados por Trump, co­me­çaram mesmo a en­viar as suas Guardas Na­ci­o­nais para o Texas. En­tre­tanto, uma ca­ra­vana de na­ci­o­na­listas ar­mados, au­toin­ti­tu­lada «Exér­cito de Deus», também está a ca­minho.

Se amanhã a Casa Branca fi­zesse cum­prir a Cons­ti­tuição e as or­dens do Su­premo, dar-se-ia um con­fronto entre forças ar­madas es­ta­duais e forças ar­madas fe­de­rais, o que po­deria bem des­po­letar uma II Guerra Civil. A caixa de Pan­dora está aberta: os Es­tados do Sul voltam a de­sa­fiar e a con­frontar aber­ta­mente, a cons­ti­tuição e os tri­bu­nais da União.

 

Cor­recção

Por lapso, na pas­sada edição, a cró­nica «So­li­da­ri­e­dade de África com Cuba» surgiu sem as­si­na­tura, sendo o seu autor Carlos Lopes Pe­reira. Aos lei­tores, as nossas des­culpas.

 



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