Cultura, ciência e luta - A arte rupestre do Vale do Côa

Luís Luís

A conhecida frase do Manifesto do Partido Comunista que afirma que «a história de toda a sociedade até aqui é a história de luta de classes» sofreu um esclarecimento, em nota à edição inglesa de 1888, onde Engels esclarecia que se referia à história escrita, deixando de fora a sociedade sem classes, característica do comunismo primitivo.

As mais antigas sociedades sem classes integram-se no que os pré-historiadores denominam por Paleolítico, que se iniciou há cerca de três milhões de anos no Leste africano, quando os mais antigos hominídeos produziram o primeiro utensílio de pedra. A produção de ferramentas iniciará a história do domínio do trabalho humano sobre a natureza. A evolução humana chegará à nossa própria espécie, que, desde África, atinge a Europa há cerca de 40.000 anos, ocupando todos os continentes, durante o Paleolítico superior.

Estas primeiras sociedades humanas não produziam, vivendo da caça, pesca e recoleção. Eram sociedades igualitárias, com um regime de propriedade comum, onde se praticava a partilha generalizada. A dependência de recursos naturais, móveis e sazonais, determinava uma elevada mobilidade dos pequenos bandos.

Há cerca de 40.000 anos começam a surgir na Europa (Altamira, Lascaux, Escoural) e no Sudeste asiático (Celebes) representações artísticas nas paredes de grutas. A arte paleolítica caracteriza-se pela representação de grandes herbívoros selvagens, sobretudo cavalos, auroques, bisontes, cabras e veados, mas também mamutes e renas, representados em perfil absoluto de forma tendencialmente naturalista. Esta primeira arte afirma a separação do ser humano da vida animal, libertando-se da simples subsistência «através da capacidade de encontrar beleza nas coisas, da criação de coisas belas, da criação artística» (Álvaro Cunhal, A arte, o artista e a sociedade).

Durante mais de um século, a arte paleolítica foi considerada um exclusivo das grutas. Até que, em finais de 1994, a divulgação da descoberta da arte do Vale do Côa viria revolucionar a compreensão desta primeira arte.

A luta pela preservação da arte do Côa

Quando, nos inícios da década de 1990, se procedia à construção da barragem de Vila Nova de Foz Côa, foram identificadas dezenas figuras de auroque, cavalo, cabra e veado, gravadas ao ar livre, nas superfícies verticais do xisto regional, em tudo idênticas à arte paleolítica. Contudo, entre finais de 1991 e finais de 1994, o achado ficou escondido, enquanto as obras da barragem prosseguiam, até que, a 21 de Novembro de 1991, uma notícia de jornal denunciou a descoberta e o risco da sua destruição. Inicia-se então a luta pela preservação da arte do Côa perante a ameaça da submersão.

O governo PSD/Cavaco Silva dizia defender a conciliação entre barragem e gravuras, apresentando como soluções o corte e remoção de painéis gravados da área inundada e visitas subaquáticas com recurso a um submarino. Na realidade, pretendia colocar em causa a importância do achado, levantando dúvidas quanto à sua verdadeira antiguidade.

Em todo este processo, os comunistas e o seu Partido estiveram na linha da frente da defesa do património cultural do Vale do Côa. O PCP foi o primeiro partido a exigir inequivocamente a salvação da arte rupestre da inundação, bem como a sua classificação como Património Mundial. As páginas do Avante! são disso eloquente prova, com uma primeira notícia a 6 de Dezembro de 1994, titulando «Património mundial, cem metros de água por cima». O Secretário-Geral visitaria as gravuras a 6 de Abril de 1995.

A situação política saída das eleições de Outubro de 1995 conduziu ao abandono do projecto de construção da barragem e à preservação da arte do Côa, entretanto classificada como Monumento Nacional e inscrita na Lista do Património Mundial da UNESCO. Chegava-se ao final de um processo único, onde o conhecimento científico, aliado à acção política, fundamentaram a decisão final.

O papel do conhecimento científico

Em 1996 foi criado o Parque Arqueológico do Vale do Côa e o Centro Nacional de Arte Rupestre, com o objectivo de estudar e divulgar a arte do Côa. Em 2010, foi inaugurado o Museu do Côa. Todo o conhecimento que sustenta visitas guiadas e o museu teve de ser desenvolvido num relativo curto espaço de tempo.

Iniciou-se então um processo de investigação científica que conciliou o estudo da arte com o seu contexto arqueológico. Prosseguiu-se a prospecção arqueológica da arte, que continua a proporcionar novos achados. São hoje mais de 600 painéis gravados, distribuídos por 60 núcleos distintos, ao longo dos últimos 20 quilómetros do Côa e em torno da sua confluência com o Douro. Identificaram-se vários sítios de habitat e de caça contemporâneos da arte. Estas escavações arqueológicas permitiram estabelecer a primeira ligação entre a ocupação humana e a arte, através da identificação num sítio de caça, de picos em quartzito utilizados para produção de gravuras, numa clara ligação entre arte e vida.

A datação da arte propriamente dita ocorreu com a escavação da rocha 1 do Fariseu que se encontrava parcialmente coberta por camadas arqueológicas. Esta «Pedra de Roseta» do Vale do Côa permitiu determinar a data de 11.000 anos para a fase final da arte paleolítica e uma data mínima de 18.400 para a fase mais antiga. Tendo em conta a datação dos picos de quartzito, a fase mais antiga da arte do Côa poderá chegar aos 30.000 anos.

A arte do Côa não termina com os caçadores-recolectores e sua sociedade sem classes. A descoberta da agricultura e pastorícia no Próximo Oriente há cerca de 10.000 anos irá trazer alterações radicais nas sociedades humanas. A chamada revolução neolítica irá promover um aumento exponencial da população, a sedentarização, a propriedade privada e a desigualdade social. Estas alterações no modo de subsistência trazem consigo profundas alterações ideológicas, expressas nas representações artísticas.

O Vale do Côa volta a testemunhar essas alterações: a arte torna-se mais esquemática e a espécie mais representada é agora a humana. Entre o séc. V e I a.C. surge-nos a arte da Idade do Ferro, onde se expressa a ideologia da classe dominante numa sociedade proto-feudal, fortemente hierarquizada, centrada na figura do cavaleiro em armas, que se imortaliza pela morte em combate. As representações regressam ao vale a partir do séc. XVII, sobretudo através dos moleiros, chegando à década 1960, quando a emigração despovoou a região.

O Vale do Côa testemunha cerca de 30.000 anos de expressão artística. Se o acto e o processo de criação artística são frequentemente individuais, a partir do momento que dá a conhecer ele «torna-se, intencionalmente ou não, um meio de comunicação entre os seres humanos, um valor inseparável da sociedade e do qual a sociedade é inseparável» (A Arte, o Artista e a Sociedade). Sob esta perspectiva, a arte rupestre é um testemunho imprescindível para o estudo da pré-história, que tem apenas a cultura material para aceder ao todo social.

Como comunistas, valorizamos esta perspectiva da arte, pois ela não apenas reflecte a sociedade, mas intervém sobre ela, sendo assim também uma via para sua transformação.

A luta dos trabalhadores do Côa

Numa sociedade de classes, essa transformação é feita sobretudo através da luta. No Vale do Côa, a luta dos trabalhadores começou logo quando os guias da arte organizaram uma primeira greve por contratos efectivos, continuamente prometidos, mas sucessivamente adiados. Enquadradas no movimento sindical unitário, as lutas no Côa prosseguem, tendo tido como ponto alto a luta pela manutenção dos vínculos à função pública em 2010.

Num contexto de desorçamentação e desresponsabilização do Estado, o governo PS/Sócrates criou a Fundação Côa Parque. Em todas estas lutas, os comunistas tiveram um importante papel, que se materializou na constituição da célula do Parque e Museu do Côa em 2012. A célula é o ponto de ligação entre o Partido e os trabalhadores e motor principal da luta necessária: na exigência do pagamento dos salários quando falharam, pela garantia de financiamento adequado, por contratos efectivos para postos de trabalho efectivos, ou pela contratação de trabalhadores.

Hoje, atrás dos anúncios públicos de recordes de bilheteira escondem-se os crónicos problemas de financiamento e de falta de pessoal. Para suprimento de necessidades efectivas, recorre-se cada vez mais a estágios temporários e a falsos recibos verdes. A diminuição do número de guias limita a resposta à procura de visitas. A falta de assistentes operacionais leva ao abandono dos núcleos de arte, o que facilita actos de vandalismo, como aconteceu em Abril de 2017 na Ribeira de Piscos. O número de arqueólogos diminui, pondo em causa a continuidade da investigação e a preservação da arte. O financiamento da investigação passa cada vez mais por candidaturas a bolsas FCT, com a consequente incerteza, precariedade e sujeição a critérios economicistas.

O governo do PS decidiu não dar resposta aos problemas que subsistem e se agravam. O aumento do número de visitantes é feito à custa do trabalho de cada vez menos trabalhadores, com baixos salários, vínculos precários e horários desregulados. Os trabalhadores do Côa sabem contudo que podem continuar a contar com o apoio político e institucional do nosso Partido e dos seus eleitos na Assembleia da República e no Parlamento Europeu, bem como com a acção dos comunistas e da sua célula, certos de que a luta política e institucional, e a luta dos trabalhadores serão imprescindíveis para a defesa do património cultural do Vale do Côa, pelo seu acesso e divulgação, pelo desenvolvimento da investigação científica e pela valorização dos trabalhadores da ciência e da cultura.