O rigor do olhar fotográfico

Manuel Augusto Araújo

Factum é uma viva lição de história dos últimos setenta e cinco anos

Percorrer as cerca de 170 fotografias de Eduardo Gageiro expostas na Cordoaria Nacional é revisitar Portugal das últimas sete décadas. De um Portugal vergado a uma persistente miséria, esmagado pela brutal repressão da ditadura salazarista-fascista do Estado Novo, ao Portugal varrido pelo vento da liberdade que a Revolução do 25 de Abril desencadeou, ao Portugal dos dias de hoje – a última fotografia é da manifestação popular comemorativa da Revolução em 2023.

Edurdo Gageiro

Portugal mostrado fotografia a fotografia nos seus sucessos políticos, sociais e culturais, da década de 1950 até 2023. Um registo do trabalho nas fábricas, no campo, na construção civil; da emigração, da repressão policial do fascismo do Estado Novo; das manifestações populares, dos sucessos da revolução; dos eventos religiosos, mas também dos bastidores da política a que se adicionaram fotografias de personalidades várias.

Pode-se talvez descobrir um ponto de viragem no olhar do fotógrafo naquela fotografia icónica de um soldado a retirar uma gigantesca foto de Salazar de uma parede na sede da PIDE. É uma fotografia de um extremo poder simbólico sublinhado pelo rigor do enquadramento e qualidade que são imagens de marca de Eduardo Gageiro.

Pode-se especular se depois dessa foto o olhar do fotógrafo não se terá libertado na alegria que se pode descobrir em todos nos sequentes registos fotográficos dos acontecimentos do dia 25 de Abril e dias seguintes, em contraponto com as fotos dos anos anteriores em que as dificuldades, as carências, as humilhações, as diferenças sociais são bem visíveis e bem documentadas. Entre o passado, que ainda é próximo, e o presente actual as diferenças são muitas, ainda que as injustiças se mantenham e Eduardo Gageiro a elas é sensível, não fica indiferente, insiste em documentá-las como um acto de cidadania, registando-as para a história, para memória actual e futura, para que sejam um relato vivo que nunca ficará aprisionado num álbum de fotografias, será sempre uma celebração da vida e da Revolução que rompeu com aquele passado de misérias e opressão.

Para as gerações que eram adultas no 25 de Abril, esta exposição é uma extraordinária celebração. Para as gerações que nasceram depois de 1974, é o descobrir uma realidade na sua rudeza, do despertar e explodir das alegrias e esperanças que não viveram. Dadas as circunstâncias actuais, esta não é um anacronismo nem um registo passivo, sobretudo quando direitos políticos, económicos e sociais estão a ser colocados em questão num contexto de persistentes desigualdades em que nada se repetirá mas poderá ser vivido de forma diversa mas igualmente perversa. A sua relevância e actualidade é exactamente essa.

Factum é uma exposição que deve ser visitada como uma viva lição de história dos últimos setenta e cinco anos, que se cruza com as virtudes do talento do olhar fotográfico de Eduardo Gageiro com toda a sua força e beleza.

 



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