O poeta que Abril abriu

Nuno Gomes dos Santos

Pelas portas que Abril abriu saíram, can­tando esse pre­sente, enal­te­cendo o fu­turo co­me­çado, amar­ro­tando sem re­morsos um pas­sado de vi­leza e de­su­ma­ni­dade, pa­la­vras de amor, ou de es­cárnio e mal­dizer, ver­me­lhas da côr dos cravos, pa­la­vras vivas, ca­valos à solta.

Di­ziam, umas, que se cha­mavam pa­la­vras abertas; fa­lavam ou­tras de acon­chegos, de ter­nura, to­mando forma no grito de alma com que um homem soube tra­duzir a es­pe­rança maior da sua gente, que era a li­ber­dade, o fim da guerra, da re­pressão, das pri­sões po­lí­ticas, o ter di­reito ao sonho e a de­fender a ma­nu­tenção e con­so­li­dação desse ver­da­deiro Es­tado Novo que não mentiu por dizer-se novo, ao con­trário do outro, de­cré­pito, a que Abril virou as costas

Ne­nhuma destas pa­la­vras ternas, abertas, duras ou vi­o­lentas se tal fosse pre­ciso, es­capou à po­esia que José Carlos Ary dos Santos cons­truiu, con­tando que «Era uma vez um país onde quem tinha di­nheiro tinha o ope­rário al­ge­mado» e que «nos tempos do pas­sado, se cha­mava esse país Por­tugal sui­ci­dado». Para o grande poeta po­pular de Abril que Ary quis ser e foi, o Dia da Li­ber­dade foi um Poema es­crito pelo povo far­dado, num dia em que Abril aqui «abriu as portas da cla­ri­dade».

O poeta já ame­a­çara, nas can­tigas a que deu pa­la­vras – e foram muitas. E boas – que não es­crevia para rimar, em­bora ri­masse: es­crevia para ser grande, o maior nas en­tre­li­nhas das le­tras das can­ções quando era pre­ciso fintar a Cen­sura, o in­su­pe­rável quando abraçou, sem amarras, as pa­la­vras mais sim­ples e mais belas com que des­creveu Abril de modo a que ne­nhum por­tu­guês pu­desse dizer, da sua es­crita, Des­culpe mas não per­cebi. Porque foram ela­bo­radas para fi­carem ní­tidas, para nos to­carem de perto, para fa­zerem parte de nós, para serem a bí­blia dos nossos dias re­no­vados e laicos.

Fi­zeram parte de nós. Fazem parte de nós, por muito que o tempo, ou as pes­soas no tempo, as te­nham ten­tado ra­surar. O poeta avisou: «mesmo que tenha pas­sado às vezes por mãos es­tra­nhas, o poder que ali foi dado saiu das nossas en­tra­nhas.» Ou seja, con­quis­támo-lo nós por ser nosso, mesmo que du­rante anos nos tenha sido es­ca­mo­teado, à força, até que «o povo saiu à rua com sete pe­dras na mão» com a von­tade ina­ba­lável de «fazer das es­pin­gardas li­vros para apren­dermos a ler» e de fazer dos ca­nhões «en­xadas para la­vrarmos a terra e das balas dis­pa­radas apenas o fim da guerra». E isso foi num tempo em que, «contra tudo o que era velho, le­van­tado como um punho, em Maio surgiu ver­melho o cravo do mês de Junho».

Du­rante dez anos Ary dos Santos (morreu em 1984) do­cu­mentou em verso a nossa His­tória. Não que tenha aban­do­nado ou­tros rumos de uma es­crita poé­tica riquís­sima, mas o poeta cro­nista do nosso quo­ti­diano não se­bas­ti­â­nico mas pal­pável que, antes, em re­lação à nossa re­a­li­dade amor­da­çada e re­pri­mida, só a ca­ri­ca­tu­rara, cri­ti­cara e a vira, em so­nhos e lutas clan­des­tinas, como um fu­turo de­se­jado, por não poder fazê-lo de outra ma­neira, com a Re­vo­lução partiu de si para si ver­da­dei­ra­mente. Partiu para nós. E re­cordou-nos que sempre ha­verá, por mais voltas que isto dê, gente que dará razão ao que es­creveu no final de «As Portas que Abril Abriu», re­fe­rindo-se ao poder então con­quis­tado:

«E se esse poder um dia

o quiser roubar al­guém

não fica na bur­guesia

volta à bar­riga da mãe!

Volta à bar­riga da terra

que em boa hora o pariu.

Agora nin­guém mais cerra

as portas que Abril abriu!»

Fa­çamos nossas as pa­la­vras do Poeta.



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