EUA – eleições e crise do sistema

Ângelo Alves

A crise está a gerar di­vi­sões na classe do­mi­nante dos EUA

Quando estas li­nhas che­garem às mãos dos lei­tores já se terão re­a­li­zado as elei­ções nos EUA. Quando as es­cre­vemos não sa­bemos os re­sul­tados. Con­tudo, dado o ob­jec­tivo deste ar­tigo, isso não será o mais im­por­tante, uma vez que nos pre­ten­demos con­cen­trar no que está por de­trás do de­gra­dante es­pec­tá­culo po­lí­tico a que temos as­sis­tido.

Co­me­cemos pelo sis­tema po­lí­tico e pro­cesso elei­toral. Con­tra­ri­a­mente à ideia de uma eleição di­recta do Pre­si­dente dos EUA, aquilo que se passou na terça-feira foi a eleição de um co­légio elei­toral de 538 elei­tores (os cha­mados grandes elei­tores), re­pre­sen­tantes dos 50 Es­tados (com dis­tor­ções re­sul­tantes da fór­mula de cál­culo desse co­légio) que de­pois ele­gerão o Pre­si­dente. A es­colha dos “grandes elei­tores” de cada Es­tado é feita na base da regra “o ven­cedor ganha tudo”, factor que dis­torce enor­me­mente o voto po­pular.

É este sis­tema, que vem do tempo do es­cla­va­gismo, que faz com que o Pre­si­dente dos EUA possa ser eleito sem ser o can­di­dato mais vo­tado, como acon­teceu com Trump em 2016. E é este mo­delo de dis­torção de­mo­crá­tica que, aliado à ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada pro­mis­cui­dade entre o poder eco­nó­mico e os dois par­tidos, De­mo­crata e Re­pu­bli­cano, tem man­tido um sis­tema de poder único, re­par­tido entre esses dois par­tidos, com as suas pró­prias cou­tadas e cli­en­telas, de­se­nhado para afastar quais­quer ou­tras forças po­lí­ticas e al­ter­na­tivas da mí­nima hi­pó­tese de con­cor­rência em con­di­ções de igual­dade. É este o es­ta­blish­ment norte-ame­ri­cano, o sis­tema de fusão do poder eco­nó­mico, po­lí­tico e mi­litar que tem go­ver­nado, com re­la­tiva “es­ta­bi­li­dade” po­lí­tica a prin­cipal po­tência im­pe­ri­a­lista ao longo da sua His­tória.

Con­tudo, essa “es­ta­bi­li­dade” pa­rece ame­a­çada e o de­gra­dante ce­nário destas elei­ções co­loca em cima da mesa a pos­si­bi­li­dade de al­te­ra­ções neste equi­lí­brio de poder. A questão impõe-se: porquê? A res­posta está di­rec­ta­mente li­gada ao apro­fun­da­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo e ao de­clínio re­la­tivo da prin­cipal po­tência im­pe­ri­a­lista do Mundo. As con­tra­di­ções eco­nó­micas e so­ciais dentro dos EUA são cada vez mais in­su­por­tá­veis, o “sonho ame­ri­cano” é cada vez mais um pe­sa­delo para uma parte sig­ni­fi­ca­tiva da sua po­pu­lação. Os EUA são hoje um dos países com mai­ores de­si­gual­dades so­ciais em todo o Mundo, onde so­bre­vivem cerca de 40 mi­lhões de po­bres, onde a in­su­fi­ci­ência ali­mentar afecta de­zenas de mi­lhões de pes­soas, onde cerca de 700 mil pes­soas vivem na rua, onde um dos mai­ores fac­tores de en­di­vi­da­mento das fa­mí­lias é o acesso a cui­dados de saúde e onde a es­pe­rança média de vida é sig­ni­fi­ca­ti­va­mente in­fe­rior à ge­ne­ra­li­dade dos países in­dus­tri­a­li­zados. A sua eco­nomia so­bre­vive sobre uma bolha de en­di­vi­da­mento (do Es­tado Fe­deral, das em­presas e dos ci­da­dãos) – man­tida à custa do resto do mundo – que mais cedo ou mais tarde será in­sus­ten­tável, so­bre­tudo num quadro de per­sis­tente in­flação, cres­cente de­sin­dus­tri­a­li­zação e per­sis­tência de uma ba­lança co­mer­cial es­tru­tu­ral­mente ne­ga­tiva. A grande questão que emerge destas elei­ções é que os EUA estão mer­gu­lhados numa pro­funda crise es­tru­tural cujas con­tra­di­ções che­garam aos pi­lares do sis­tema de do­mínio po­lí­tico e está a gerar di­vi­sões no seio da sua classe do­mi­nante. Trump não é um ele­mento es­tranho a tudo isto. Ele é a imagem ca­ri­ca­tu­rada da crise es­tru­tural nos EUA. Foi o sis­tema sem al­ter­na­tiva que lhe abriu as portas. O mesmo sis­tema que também Ka­mala Harris con­tinua a per­so­ni­ficar e a de­fender, veja-se a tí­tulo de exemplo a con­ver­gência de ambos no apoio a Is­rael e ao ge­no­cídio na Pa­les­tina.

 



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