O fosso

Gustavo Carneiro

As úl­timas se­manas fi­caram mar­cadas por uma série de acon­te­ci­mentos na Área Me­tro­po­li­tana de Lisboa: a morte, num bairro da Ama­dora, de (mais) um ci­dadão às mãos da po­lícia; os pro­testos po­pu­lares por “jus­tiça e paz”; os epi­só­dios de vi­o­lência; o de­bate po­lí­tico e me­diá­tico cen­trado nos apelos a mais “se­gu­rança” – que, vindos de onde vêm, todos per­ce­bemos o que sig­ni­ficam.

Du­rante dias a fio, falou-se de equi­pa­mento po­li­cial, do “mús­culo” ne­ces­sário para in­tervir nas de­sig­nadas Zonas Ur­banas Sen­sí­veis, dos li­mites ao uso de armas de fogo pelos agentes das forças de se­gu­rança, do tipo de po­li­ci­a­mento que existe e da­quele que, para muitos, de­veria existir. Ques­tões per­ti­nentes, sem dú­vida, mas que dei­xaram de fora muitas ou­tras – por­ven­tura as es­sen­ciais.

Pouco se disse, de facto, acerca das po­pu­la­ções que ha­bitam nesses bairros feitos guetos, dos ma­gros sa­lá­rios que au­ferem, dos em­pregos pre­cá­rios que acu­mulam, das dis­cri­mi­na­ções de que todos os dias são ví­timas, da po­breza que afecta grande parte das fa­mí­lias (e, no seu seio, das cri­anças), das pers­pec­tivas que faltam a tantos da­queles jo­vens. E, também, da ca­rência de ser­viços e equi­pa­mentos pú­blicos ou da má qua­li­dade da mai­oria das ha­bi­ta­ções…

De modo bem mais dis­creto, foi de­ba­ti­dapor estes dias, na As­sem­bleia da Re­pú­blica, a vi­o­lência nas es­colas, com PSD, CDS, Chega e IL a re­jei­tarem (com a sig­ni­fi­ca­tiva abs­tenção do PS) um pro­jecto do PCP que cen­trava o com­bate a este pro­blema na pre­venção e no re­forço da Es­cola Pú­blica, in­clu­siva e de­mo­crá­tica, e da sua ca­pa­ci­dade de res­posta atem­pada – e ade­quada – às si­tu­a­ções. Nele pro­punha-se o re­forço do nú­mero de pro­fis­si­o­nais (do­centes, au­xi­li­ares, psi­có­logos, as­sis­tentes so­ciais) e da sua for­mação es­pe­cí­fica, a va­lo­ri­zação da acção so­cial es­colar e dos apoios edu­ca­tivos, o fo­mento da in­clusão e da in­te­gração, o com­bate ao ra­cismo e à xe­no­fobia, a adopção de mo­delos de gestão de­mo­crá­ticos e par­ti­ci­pa­tivos.

Pre­va­leceu, porém, a in­sis­tência na visão re­pres­siva e pe­na­li­za­dora do Es­ta­tuto do Aluno (que não só não re­solveu ne­nhum pro­blema re­la­ci­o­nado com a vi­o­lência nas es­colas, como atu­lhou os pro­fes­sores em ta­refas bu­ro­crá­ticas), em ór­gãos de di­recção uni­pes­soais, não eleitos e com po­deres ex­ces­sivos, na des­con­si­de­ração dos es­tu­dantes, dos seus an­seios, das suas opi­niões edas suas as­so­ci­a­ções.

Em ambos os casos, há duas vi­sões em con­fronto: a que, não iso­lando a es­cola ou o bairro do resto da so­ci­e­dade, pre­tende ir à causa dos pro­blemas, que nunca são apenas de um ou de outro in­di­víduo; e a que ig­nora con­textos e aposta ex­clu­si­va­mente na “res­posta” re­pres­siva e penal, sempre com uma evi­dente marca de classe.

E assim se vai apro­fun­dando o fosso que está na origem dos fe­nó­menos que se ga­rante querer re­solver.



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