Muita força por pouco dinheiro

Nuno Gomes dos Santos

A In­ter­na­ci­onal será, por­ven­tura, a mais can­tada e a mais cé­lebre canção po­lí­tica e, por ra­zões ób­vias, de tra­balho

Di­gamos que esta prosa é mais sobre as con­di­ções de tra­balho e o papel que a canção vem de­sem­pe­nhando, ao longo dos anos, na vi­vência e na de­núncia dessas con­di­ções, do pro­testo contra a ex­plo­ração do tra­balho, do com­bate às prá­ticas de sub­missão das classes tra­ba­lha­dores e sua su­jeição aos in­te­resses de quem se ins­tala no alto do seu “quero, posso e mando”.

Há anos largos, o grupo In­troito (do qual fiz parte) es­creveu e in­ter­pretou, logo a se­guir ao 25 de Abril, uma canção a que chamou “Can­tiga do Tra­balho, do Pão, do Di­nheiro e do Pa­trão” (com lin­guagem da­tada: «ai ca­ma­rada o teu suor / é o di­nheiro do pa­trão / é pre­ciso dizer não»), de­certo menos con­se­guida do que a canção do Sérgio, mas se­gu­ra­mente sobre o mesmo tema, o tra­balho mal pago e mal tra­tado.

O papel das can­ções de e sobre o tra­balho as­sumiu vá­rias formas e in­tuitos: o de marcar o ritmo de um tra­balho que exige mo­vi­mento re­pe­ti­tivo, o de ali­viar o so­fri­mento so­nhando ou­tras con­di­ções, o de pro­testo contra ser­vi­dões, o de in­cen­tivo à luta dos tra­ba­lha­dores. Por ordem, as can­ções de tra­balho es­cravo, no­me­a­da­mente nos EUA, os es­pi­ri­tuais ne­gros, as es­critas por can­tau­tores atentos e pro­gres­sistas, ou as de quem es­creveu (e es­creve) can­tigas que apontam ca­mi­nhos para me­lhores con­di­ções de vida e de­fendem ide­o­lo­gias que, na prá­tica, tendem e eli­minar a ex­plo­ração do homem pelo homem.

Nos Es­tados Unidos, antes de Lin­coln e de­vido a um in­tenso tra­balho mis­si­o­nário, as can­ções de tra­balho dos es­cravos ne­gros ti­nham uma forte com­po­nente re­li­giosa: «I lo­oked over Jordan and what did I see? (…)/ A band of an­gels co­ming after me / co­ming for to carry me home» (olhei o Jordão e o que é que eu vi? / um bando de anjos atrás de mim / vindo para me levar a casa). A casa: sal­vação, céu, li­ber­tação.

Po­demos falar de Bella Ciao, que co­meçou por ser uma canção que as mu­lheres em tra­balho sa­zonal nos campos can­tavam; de­pois, com a mesma me­lodia, passou a ser uma canção de pro­testo contra a I Guerra Mun­dial e acabou sendo, com nova letra, um sím­bolo da re­sis­tência an­ti­fas­cista ita­liana. Ou de em ex-Be­atle, John Lennon, que foi ama­du­re­cendo e chegou a um nível capaz de, para além da so­berba canção Ima­gine, ter es­crito e in­ter­pre­tado Wor­king Class Hero (herói da classe tra­ba­lha­dora), também (e não só) um apelo a que as coisas mudem para quem tra­balha. Ou dos his­tó­ricos Pete Se­eger ou Woody Guthrie. Ou de Bob Dylan (Mag­gie’s Farm, sobre as con­di­ções de tra­balho dos cam­po­neses).

Em Por­tugal, antes e logo de­pois do 25 de Abril de 1974, todas as can­ções de pro­testo contra o re­gime ou, de­pois, de de­núncia de si­tu­a­ções que atro­pe­lavam as ideias nas­cidas da Re­vo­lução dos Cravos, ti­nham a classe ope­rária ou as classes tra­ba­lha­doras como alvo, por serem as mais afec­tadas, pri­meiro pelo fas­cismo por cá vi­gente e, mais tarde, pelos que pre­ten­diam (e ainda hoje pre­tendem) trans­formar a mu­dança real numa me­ta­mor­fose du­vi­dosa.

De José Afonso a José Ba­rata Moura, pas­sando pelo Adriano, o Zé Jorge Le­tria (que de re­pente se calou…), o Carlos Mendes, o Tordo (é im­por­tante lem­brar as le­tras de Ary dos Santos), a Luísa Basto, o Vi­to­rino, o José Mário Branco, o Sérgio Go­dinho ou o Fausto, todos, de formas di­fe­rentes e num ponto con­ver­gentes (um fu­turo me­lhor) can­taram com a classe tra­ba­lha­dora na base das le­tras cons­truídas ou na es­colha dos acordes ne­ces­sá­rios.

No Brasil po­demos sin­te­tizar essa luta na canção do Chico Bu­arque Vai Tra­ba­lhar Va­ga­bundo. Não há mais es­paço para tantos que, nesse país, can­taram pelo pro­gresso e pela luta ac­tiva por um fu­turo me­lhor para quem tra­balha («quem sabe faz a hora, não es­pera acon­tecer», Ge­raldo Vandré, Para Não Dizer Que Não Falei das Flores).

Por estas bandas os que can­tavam can­ções pro­gres­sistas e re­vo­lu­ci­o­ná­rias fa­ziam-no em co­lec­ti­vi­dades, na Uni­ver­si­dade, nos lu­gares para os quais eram so­li­ci­tados por sin­di­catos ou as­so­ci­a­ções de es­tu­dantes, antes do 25 de Abril, e nesses lu­gares e de­pois também em es­paços abertos, em fes­ti­vais, em re­cintos que atraiam muita gente que ouvia cantar e can­tava com a ou­sadia e o atre­vi­mento que a Li­ber­dade trans­porta. O pri­meiro 1.º de Maio em Li­ber­dade foi o pon­tapé de saída. A Festa do Avante! foi o grande pri­meiro passo.

A um nível mais abran­gente, A In­ter­na­ci­onal será, por­ven­tura, a mais can­tada e a mais cé­lebre canção po­lí­tica e, por ra­zões ób­vias, de tra­balho. Mas numa es­cala menor que diz res­peito a este lugar cha­mado Por­tugal ou­vimos ainda, fa­zendo coro e re­co­nhe­cendo a sua ac­tu­a­li­dade, as pa­la­vras da canção do Sérgio: «Vi-te a tra­ba­lhar o dia in­teiro / cons­truindo ci­dades pr’ós ou­tros / car­regar pe­dras, des­per­diçar /muita força por pouco di­nheiro». E, sem des­curar a luta pelo «di­reito a con­di­ções de tra­balho dignas» e, sempre de acordo com a nossa Cons­ti­tuição, sa­bendo que «todos têm di­reito a um sa­lário ade­quado ao seu tra­balho», lem­bramos, com ale­gria, a canção que Paulo de Car­valho criou (letra de Isabel Baía) para fes­tejar o 1.º de Maio: «Hoje não vais tra­ba­lhar porque faz anos que és tra­ba­lhador.»

 



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