«Três frentes na curva do tempo», de Nuno Gomes dos Santos
Nuno Gomes dos Santos conta histórias com gente dentro, sobre um país que castigou, perseguiu e torturou os seus melhores
A memória, ferramenta essencial de quem escreve ficção, anda, neste livro de Nuno Gomes dos Santos, em desatado percurso. Memória regressiva, expositiva e fecunda. Nesta matéria romanesca, no corpo sincrónico de Três frentes na curva do tempo, rara incursão da voz, do falajar urbano, esse lisboês de que falava José Cardoso Pires, do povão, numa literatura que se vem alheando da realidade deste rectângulo à beira mágoa plantado, num singular discurso que incide sobre as vidas de um grupo coeso de jovens em busca de futuro.
O autor remete-nos, com mestria e saber, para os tempos de antes do Abril primeiro das nossas vidas, fazendo-o num estilo desengomado, sem mergulhar em melodrama, para nos falar das complexas vidas que atingem os protagonistas, todos eles vítimas dos anos ignaros de Salazar e Caetano, ou seja, colocando a situação social e política do país dos anos 1960/70, onde deve ser colocada, sem alardes substantivos, antes descrevendo este grupo, síntese do pulsar de uma comunidade, ou seja, malta com determinação, informada e lutadora, com uma forte vontade de mudar o estado das coisas.
A linguagem desatada e ágil de Nuno Gomes dos Santos, que já Orlando Neves, Dinis Machado e Mário Zambujal, experimentaram, relata-nos os percursos de seis amigos e as suas opções pessoais e políticas face ao eclodir da Guerra Colonial. Nesta crónica das vidas deste grupo, o estilo alavanca a narrativa, ajudando-a a manter-se num patamar afim do linguajar da rapaziada dos bairros, próxima de nós, portanto, reflectindo em pleno uma Lisboa atulhada em contrariedades, males de vida e escasso pecúlio, mas com malta com capacidade de desenrascanço e de se “fazer à vida”, mergulhar no escuro, tomar partido, ir à luta e aguentar a estocada. Os signos referenciais de uma geração, a que hoje terá mais de 70 anos, percorrem esta escrita, como bem anotou Pedro Tadeu: o fascismo e a luta antifascista; ir para a guerra a contragosto, ou para lhe colocar pauzinhos na engrenagem; a emigração a salto; os massacres de Wiriyamu e Nambuangongo; a música que começava a denunciar uma outra realidade, nas vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, José Mário Branco, Sérgio Godinho e outros; a emigração das zonas rurais do norte do país e a realidade dos portugueses em França, vivendo em bairros imundos, como os bidonville de Champigny e Saint-Denis; Jack Kerouc e o desejo libertário e o amor livre (utopias inalcançáveis em país de pudores ostensivos e hipócritas); os Beatles; as alegrias e desilusões do Maio68; a Censura, o medo, a PIDE, Peniche, Tarrafal, Caxias, Aljube. O Partido que nas sombras acendia o lastro do porvir, as reuniões clandestinas, a entreajuda, o trabalho de sapa, o risco de ser visto e ouvido, num país em que o medo tinha tudo até ouvidos nos teus ouvidos.
O país que habita este romance (há quem se apaixone, que case, que dê sinais de concretizar o impulso que lhes agita a pele – Alda, Ingrid), é-nos dado pelos protagonistas e pelo narrador omnipresente. Rogério Silva, irá para Angola, como alferes miliciano médico, dir-nos-á da sua dolorosa experiência no hospital militar de Luanda; Zé Marques, tipógrafo que se nega à guerra e parte a salto para a Dinamarca, continuando aí a pugnar para que o país longínquo seja um dia livre e justo; Zé Pedro dinamizará os bailes e a marcha do clube do bairro, ao mesmo tempo que participa nas reuniões clandestinas do Partido; Margarida, que veio para a cidade em busca de melhor sorte, emigrará para França, onde conhece Jean-Paul; Alda Filipe, enfermeira no hospital de Luanda, apoiará Rogério nos momentos de angústia e solidão partilhada; Zé Pedro, que regressa da Dinamarca com Abril nos olhos, irá continuar, em algum jornal do Bairro Alto, a sua função de tipógrafo, aguardando que Ingrid, que conheceu no país dos gelos, o abrace em Lisboa. De sentimentos, de solidão, de saudades, de amor e de morte, nos falam estes retratos que o autor expõe numa galeria de afectos, onde nos revemos inteiros.
São estas histórias com gente dentro, sobre um país que castigou, perseguiu e torturou os seus melhores, que Nuno Gomes dos Santos, com a perícia do jornalista e a arte descritiva do escritor, nos conta neste livro. Das dores e cicatrizes dos anos de Salazar e Caetano, aos dias altos, à intensa alegria que Abril nos deu.
Carlos Carvalhas, dá-nos, a rematar, uma interessante e pedagógica “nota de leitura”: «Como lerá Três Frentes na Curva do Tempo um jovem que não viveu o 25 de Abril nem o fascismo, que os bem-pensantes referem por “Estado Novo”? Estou convencido que lhe despertará a curiosidade para conhecer mais, que o ajudará a perceber melhor o país em que vive, as circunstâncias que moldaram os seus pais e avós e concluirá, como o das barbas, que a revolução é mesmo a “Locomotiva da História”.»