Eraserhead – No Céu Tudo É Perfeito
“Lynch era sem dúvida um esteta, mas com preocupações sociais e políticas”
David Lynch parece nunca se ter preocupado com a verosimilhança ou fácil interpretação dos seus filmes. Pelo contrário, manifestou sempre uma leve irritação quando os seus entrevistadores lhe pediam que explicasse excertos ou lhe propunham descodificações, observando que competia a cada um dos espectadores ler como lhe aprouvesse. Não significa isto que os seus filmes não convocassem um pensamento sobre o mundo e sobre algumas das suas obsessões associadas a um determinado tempo. Lynch era sem dúvida um esteta, mas com preocupações sociais e políticas que abordou de forma recorrente, sem para isso obedecer a uma escrita convencionalmente realista.
A sua longa-metragem de estreia, realizada em 1977, com o título original Eraserhead (cabeça de apagador) ou na tradução em Portugal No Céu Tudo É Perfeito (que replica uma frase de uma música cantada no filme) não elucida sobre o tema da estória, mantendo o registo surrealista que muitas vezes lhe é atribuído. Contudo, no momento em que discutimos tanto, por exemplo a partir da série Adolescência da Netflix, as questões das novas sociabilidades digitais, os perigos deste novo cenário aparentemente tão exposto, mas simultaneamente tão velado, e os desafios da parentalidade que daí decorrem, faz sentido regressar a este filme.
O protagonista de Eraserhead é Henry, um jovem atormentado, que tenta lidar com o cenário onde habita, industrializado, repetitivo, sujo e inóspito, e o bebé-monstro que tem a seu cargo, de quem cuida na sua casa decrépita e exígua, e cujo aspecto, manifestações e espasmos não consegue descortinar. Enquanto Mary, a namorada, suposta mãe da criatura os abandona porque não consegue suportar a situação, Henry deambula entre a realidade dura e alguns momentos de evasão erótica ou espiritual, procurando conciliar a vontade de fuga e a responsabilidade de cuidar da criança a seu cargo que não compreende nem lhe gera empatia. Após vários episódios em que elementos que parecem representar espermatozóides são sistematicamente destruídos e espezinhados, o pai, cansado dos lamentos e da atenção constante que deve dedicar à criatura, decide destruí-la.
Analisar o que se passa no contexto digital faz-nos crer que as crianças e os jovens (e também os adultos, veja-se o caso do Chocolate do Dubai) vivem uma realidade paralela, desconectada do mundo real e perniciosa, capaz de suscitar um pensamento intolerante, racista e/ou machista. É verdade que é também aí que se prometem as vidas perfeitas, com as crianças mais bem vestidas e penteadas, com os lanches nas lancheiras mais esmerados, com as actividades mais educativas, com trabalhos escolares dignos de ser expostos no museu.
Lynch aponta no seu filme que a vida adulta, o trabalho, a norma social (atente-se no episódio em que Henry vai conhecer os pais de Mary) e a parentalidade são combates presentes desde há muito e que a digitalização implica apenas um novo quadro em que estamos a vive-los. Talvez não devêssemos levar Adolescência demasiado à letra. Quando comentava recentemente com o camarada Bruno Ferreira, psicológo, que me tinha incomodado particularmente a parte da série em que os pais reflectem sobre a sua “culpa” e o que poderiam ter feito de diferente para ajudar o filho, este disse-me que para si o mais relevante tinha sido o segmento em que os pais, sem consciência disso, se infantilizam perante a filha, e regressam ao seu passado para uma idealização da sua experiência tida como mais ingénua ou pura face aos perigos actuais. Concordei com esta visão.
O que David Lynch nos demonstra neste filme, notadamente complexo e assumidamente alegórico, talvez não fácil de ver pela sua visualidade brutal, diferente da estética do plano sequência que se quer aproximar ao realismo da Netflix, é que há muito tempo andamos a navegar pelos mesmos problemas de incomunicabilidade e reconhecimento de novos territórios e esses problemas permanecerão.