Sebastião Salgado, fotógrafo dos condenados da Terra
Sebastião Salgado era um repórter fotográfico, uma testemunha da condição humana
«O mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade dos que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não têm nada». Esta é a lente da máquina fotográfica de Sebastião Salgado que irá correr mundo registando os dramas sociais dos condenados da terra, dos excluídos da terra pela brutal exploração das mulheres e homens que sofrem as mais agrestes condições de vida, lutam pela sobrevivência entre fomes e guerras que a trituradora capitalista, nas suas variadas formas de violência e crueldade, esvaziam de humanidade.
As fotografias de Sebastião Salgado, sempre a preto branco, escrevem história, registam o mundo como o local de um continuado crime que a sua máquina fotográfica denuncia com as suas séries de imagens que são um atlas deste nosso desumano universo. Os trabalhadores sem terra no Brasil, os garimpeiros das minas de ouro da Serra Pelada, a fome extrema na Etiópia, o genocídio no Ruanda, depósitos de petróleo ardendo na Guerra do Golfo, os deslocados e refugiados das guerras no Afeganistão, Iraque, Médio Oriente, em África, as fomes e secas do Sahel, a devastação da região amazónica, são milhares de fotogramas que, palmilhando as sete partidas do mundo, retratam em directo e sem filtros as lutas de classes nos seus mais diversos planos em todos os continentes.
A excepcional qualidade estética das suas fotografias tornaram-no um alvo dos que pretenderam esvaziar a sua força impressiva, apropriando-se das críticas de Walter Benjamin nos seus ensaios de O Autor como Produtor, Pequena História da Fotografia e Pintura e Fotografiai, em que verbera os fotógrafos que fazem da miséria humana um objecto de consumo e utilizam a criatividade na fotografia com cedências à moda tornando-a numa mercadoria, o que, em relação a Sebastião Salgado, é um despropósito com a intenção de desfocar o impacto das violentas denúncias que as suas séries fotográficas fazem desnudando, sem contemplações nem derivas, os impactos da ordem social vigente imposta pelo neoliberalismo. É um fotojornalista, um repórter fotográfico uma testemunha da condição humana, em que a arte da fotografia nunca procura efeitos fáceis, enquadramentos espectaculares que branqueiem a realidade exposta em toda a sua crueza.
Em Sebastião Salgado a fotografia é um registo da realidade. Nega, recusa que as suas fotografias sejam arte. Afirma com clareza «muitos fotógrafos dizem que são artistas. Eu não sou artista, sou fotógrafo (…) a fotografia, assim como o texto, de forma alguma é objectiva, ela é subjectiva. É com a sua ideologia que se fotografa. Em última instância, com a sua maneira de pensar», o que o certifica como um fotógrafo militante que usa a máquina fotográfica como uma arma.
Fotograma a fotograma Sebastião Salgado é um lutador contra a amnésia colectiva, a aceitação frívola da exploração do trabalho, da degradação dos ecossistemas humanos e naturais provocados por um sistema bárbaro, imoral que não tem limites nem fronteiras com o único objectivo da desenfreada ganância de obter lucros onde os possam escavar. Fotograma a fotograma Sebastião Salgado, utiliza as implicações contidas na autenticidade da fotografia para literalizar as condições de vida, desarticulando os mecanismos das indiferenças, expondo as misérias humanas não para nos comover ou para limparmos consciências nos comentários inócuos das redes sociais, mas para agarrarmos nas nossas mãos as ferramentas de transformação da vida no mundo concreto em que estamos inseridos.
Com a morte de Sebastião Salgado fica uma extensa obra fotográfica organizada em séries icónicas na história da fotografia, desde a sua primeira, Outras Américas, ao Ouro, Trabalhadores, Crianças, Migrações até a sua última Génesis, que documentam este nosso mundo com um rigor sociológico e antropológico que a passagem do tempo não conseguirá desgastar.
i Benjamin, Walter, O Autor como Produtor, p. 271,293; Pequena História da Fotografia, p,243,261; Pintura e Fotografia, p. 303,313, in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin 3, edição e tradução de João Barrento, Assírio&Alvim 2006