Pés de Barro, de Nuno Duarte

Domingos Lobo

A grande literatura é a que transgride nos deixa suspensos do seu virtuosism

Afinal a história do povo, de quem trabalha e constrói devires, os que dia a dia, nos campos, nas fábricas, no comércio, nas oficinas, com a seiva que trazem nos braços, são os grandes obreiros deste país, são eles, com as suas lutas, sonhos e resistência, os verdadeiros protagonistas dos tempos de mudança, a par com os dias em que as sombras da usura nos ameaçam tolher os passos e lhes colocamos pauzinhos na engrenagem. Os que resistem. Os que corajosamente se perfilam contra o medo.

O povo miúdo, os operários, os que constroem pontes como se voassem no trapézio de um circo, um trapézio construído com milhares de toneladas de aço, suspenso sobre um rio, podem ainda, nestes tempos em que o absurdo campeia e o poder do dinheiro dita as regras e comanda, já sem pudor, os seus arautos que debitam o velho-relho discurso da submissão, da guerra e do ultraje, serem protagonistas de um livro raro, um livro que nos fala de uma ponte que irá ligar as duas margens do Tejo e dos seus lídimos obreiros, nos diz da fome, da miséria vivida em tugúrios sem luz nem ar, da guerra nas colónias onde os jovens, enviados aos milhares a partir da Rocha do Conde de Óbidos, são carne para as minas escondidas na picada e o tricotar trágico das kalashnikov escondidas atrás dos embondeiros e do capim, os que dela regressam estropiados, sem pernas e sem ânimo, ou loucos como o Quim, irmão do Victor Tirapicos, operário da ponte que o fascismo, com o apoio de um consórcio americano, começa a erguer entre as ruas de Alcântara, mesmo junto ao Pátio do Cabrinha onde habitam o tio Artur, sapateiro, a tia Ema, que trabalha na fábrica Regina, e a Dália, muda, mas que consegue ouvir o agitar tectónico nas profundezas da terra. Ao pátio chega o Victor, que não sabia as letras, recém-saído da cadeia do Linhó onde cumpriu dois anos por ter roubado um pão e um saco de batatas, para matar a fome, vem candidatar-se a um lugar de serralheiro na construção da nova ponte e refazer a vida, com o apoio dos tios, já que o pai, entrevado, o escorraçou porque um Tirapicos, por muita fome que lhe rasgue as tripas, não rouba.

É da saga da construção da ponte sobre o rio grande, nos anos 1960, suas grandezas e misérias, que este romance poderoso e singular, se faz, mas, de igual modo, pelas vozes, dores, desilusões e revolta dos homens, mais de 1500, que passo a passo, com cimento, aço e coragem, a vão erguendo. Das gentes do Pátio do Cabrinha nos dirá Nuno Duarte com mestria, com o olhar perscrutador e a acutilância descritiva de um autor neo-realista (a lembrar Romeu Correia), suas manhas, perfídias, lágrimas e desenrascanços (a Matulona, que se prostituía numa barraca pertença do consórcio da ponte), a Cordália que estava sempre doente, a Adélia fadista, o velho que aprendia a desler, o Ti Zé Maria, que fazia serenatas à Helena, o Lúcio da tasca, que dizia as coisas duas vezes, o Josué, que era sucateiro e um biltre da pior colheita. Uma galeria de personagens populares e pícaras, a que se juntam outras de grande dimensão humana, como o tio Artur, que fazia botas para o Atlético, a tia Ema, que foi a Lisboa para falar com o primo que era inspector da PIDE, porque o Adriano, agente da secreta, andava a perseguir o sobrinho. Tia Ema acabou sob os escombros do tecto da estação de Cais do Sodré, sem conseguir falar com o primo; o Victor, que era sensível aos cheiros, a Dália era chocolate, o Adriano PIDE era morte; o Adriano, com os furões da PIDE que entraram pela casa dos Folha adentro com os narizes espetados, uma marabunta que revirou tudo. Victor também será preso pela polícia política, acusado de um crime que não cometeu, será barbaramente torturado, enfiado num curro infecto meses sem conta. Só voltará a ver o Sol, mesmo dobrado ao peso das sevícias, numa manhã de Abril. Desse 25 de Abril, que dará novo nome à ponte que o Tirapicos, o Pança, o Lenine, que teve de repetir duas vezes o nome a um incrédulo Thomaz-corta-fitas; o Zé Silva, o Ivo Pastor, o Vicente e todos os que ajudaram a erguer aquela ponte que une as duas margens do Tejo e se engalanou de vermelho.

Pés de Barro, título feliz deste romance de estreia de Nuno Duarte, Prémio Leya de 2024, prova-nos que é possível escrever sobre as vidas e os trabalhos de operários, das gentes dos bairros de Lisboa nos anos de brasa de 60, sem a petulância escarninha de alguma literatura que pensa que os pobres não têm história; que é possível com essa humana matéria fazer obra séria, superiormente bem escrita, que se lê de um fôlego, urdi-la sobre a nossa história contemporânea num português soberbo e sensível, mesmo quando descreve as safadezas que o fascismo impôs ao povo miúdo e de mãos limpas. A nossa literatura está de novo a reencontrar o seu legítimo caminho. Um romance que, nas sua figuras centrais, nos remete, como bem assinalou Miguel Real, para Baltazar e Blimunda, de Saramago, aqui recuperados em Victor Tirapicos e Dália. A grande literatura é a que converge nas suas linhas essenciais, que transgride e nos deixa suspensos do seu virtuosismo.



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