Não há outra terra
Temos relva – ela existe! / Temos uma montanha – ela existe! / Temos um galinheiro – ele existe! / Temos uma casa – ela existe! Temos... uma pedra – ela existe!
É com esta cantilena, entoada pelas crianças no carro enquanto o pai as transporta à escola na aldeia vizinha, que o filme expressa as suas principais intenções: denunciar a invisibilidade, transformada em aniquilação, a que Israel, com a conivência dos EUA, da União Europeia e seus aliados, quer sujeitar o povo palestiniano.
Fala-se de No Other Land, o filme premiado em Berlim e Hollywood, criado por um colectivo de cineastas estreantes: dois palestinianos, Basel Adra e Hamdan Ballal, e Yuval Abraham e Rachel Szor, israelitas. Esta composição da equipa, que pode suscitar múltiplas reflexões, afirma, no entanto, que o projecto em curso de aniquilação não resulta de um posicionamento ontológico ou racial; é, sim, uma questão ideológica e, essencialmente, de exercício de poder e de dominação.
Apresentado como um documentário, tem como protagonistas dois dos autores, um de cada nacionalidade, Basel e Yuval, que lutam lado a lado com o objectivo e pela necessidade de expor a barbárie. Com um relato que mistura perspectivas e modos de narrar, por vezes obedecendo a um registo mais observacional, por outras assumindo a subjectividade de Basel ou mesmo a visão dual dos dois activistas e as suas contradições, apesar da concordância, o filme evidencia o quotidiano intolerável de Masafer Yatta, uma comunidade de pequenas aldeias na Cisjordânia, em permanente destruição e ocupação pelas forças israelitas, que o justificam com a construção de campos de treino militar.
Basel é um jovem, formado em Direito, mas impedido de exercer essa actividade, membro da comunidade, que assume a tarefa de registar em vídeo a opressão e violência de que são alvo. As imagens são similares, embora de anos diferentes. O padrão é repetido: as casas humildes e precárias são destruídas pelos buldózeres israelitas em operações relâmpago e sem aviso; as populações são obrigadas a viver em grutas de modo a conseguirem permanecer na terra que lhes pertence e sempre conheceram (não há outra terra). Assistimos à queda de um familiar baleado pelo exército porque tenta resgatar o gerador que lhes fornece electricidade, noutro momento o poço de uma aldeia é preenchido por cimento e cortadas todas as condutas de fornecimento de água. Perante um grito de desespero de um aldeão que aponta que o acesso à água é um direito humano, a resposta é a continuação obstinada da devastação.
Por vezes, muitas vezes, a câmara oscila nas mãos de Basel, mostrando-nos apenas fragmentos do cenário, enquanto este se aproxima dos locais em destruição ou foge dos militares. Aí é a urgência e o testemunho que prevalecem sem ceder à figura do herói ou à deificação dos que resistem. Mais para o final a casa de Basel é destruída e também a escola, cuja maioria dos materiais é impossível resgatar. O activista tem a expectativa de conseguir mostrar ao mundo a agressão diária a que são sujeitos os palestinianos e mobilizar as consciências internacionais.
Yuval, um jovem que se apresenta como um jornalista israelita, pede para frequentar a comunidade para documentar a luta dos palestinianos. Perante o seu entusiasmo face à justeza da posição, reclama algum mérito da sua intervenção. Basel adverte-o sobre a sua excessiva exaltação: relembra-o que a contenda decorre há muitas décadas e que a sua vontade não será suficiente para resolver o problema de forma célere.
O filme reflecte sobre a intervenção de ambos, representantes dos verdes e dos amarelos. As cores referem-se às matrículas dos automóveis: verde para carros palestinianos e amarelo para israelitas. O mundo dividido por um esquema cromático em que os amarelos vão a todo o lado e os verdes são alvo de todos os constrangimentos. Um mundo em que os amarelos determinam tudo e determinam também sobre o que não lhes pertence. Um mundo em que o aliado israelita que os visita e compreende é também um amarelo que pode regressar a casa quando quiser e para sempre, se o desejar. Do lado dos verdes, resta apenas a paisagem dizimada, apesar do esforço permanente de voltar a erigir os edifícios destruídos, e uma terra que lhes pertence (não há outra terra), mas onde não lhe é permitido viver.
Como é possível que um povo a quem tentaram apagar da história e que sofreu da forma horrenda que testemunhámos esteja a concretizar o mesmo desígnio sobre outro povo? Ao longo do filme afronta-nos a desproporção, verdadeiramente canhões contra pedras. Do lado de Israel, toda a tecnologia e a arrogância da força, do lado palestiniano a ausência de meios e o desespero feito coragem de quem não lhes resta outra hipótese se não resistir.
Basel pergunta a certa altura a Yuval quando casarão. É a expectativa de uma vida comum. O filme foi concluído em 2023 e, entretanto, Basel casou e teve uma filha. Ganham um Oscar em Hollywood e assistem à cerimónia onde foram premiados. Contudo, a opressão converteu-se, entretanto, num genocídio. Os amarelos regressaram a salvo ao seu destino. Hamdan Ballal, o outro palestiniano que assina o filme, foi preso e espancado ao voltar a casa.