As falácias de Fallaci e a cartilha da contra-revolução

José Augusto Esteves

Na “en­tre­vista” abundam falsas de­cla­ra­ções, con­ceitos que Álvaro Cu­nhal nunca uti­lizou, nem uti­li­zaria

Fez cin­quenta anos, no pas­sado dia 6 de Junho, que o se­ma­nário L’ Eu­ropeo pu­blicou e ou­tros re­e­di­taram uma “en­tre­vista” de Álvaro Cu­nhal re­a­li­zada pela jor­na­lista ita­liana Oriana Fal­laci, em cujo cur­rí­culo se averba um rol de en­tre­vistas po­lé­micas, con­tes­tadas por vá­rios dos seus en­tre­vis­tados.

Uma “en­tre­vista”, que as forças da contra-re­vo­lução de então trans­for­maram em car­tilha e ele­mento de prova de um pre­tenso pro­jecto anti-de­mo­crá­tico do PCP e re­fe­rência da cam­panha anti Abril e an­ti­co­mu­nista de hoje da di­reita re­ac­ci­o­nária, dita li­beral ou não. “En­tre­vista”, cujas trans­cri­ções são, como pron­ta­mente o PCP o de­nun­ciou, uma ten­den­ciosa de­for­mação e uma gros­seira de­tur­pação das pa­la­vras de Álvaro Cu­nhal, que, como então se afir­mava, se in­se­riam na «sis­te­má­tica cam­panha an­ti­co­mu­nista que a re­acção in­terna e ex­terna leva a efeito através dos seus ór­gãos de in­for­mação».

Uma peça que co­nhece a luz do dia umas es­cassas se­manas após a re­a­li­zação das elei­ções para a As­sem­bleia Cons­ti­tuinte. As pri­meiras elei­ções re­a­li­zadas no Por­tugal de Abril. Elei­ções que o PCP sempre de­fendeu e cujos re­sul­tados foram de se­guida pre­texto para re­lançar uma vi­o­lenta cam­panha in­fa­mante do pro­cesso re­vo­lu­ci­o­nário, acu­sado de se­guir o ca­minho do cer­ce­a­mento das li­ber­dades e da re­núncia da de­mo­cracia, pro­mo­vida por uma “Santa Ali­ança” das forças re­ac­ci­o­ná­rias, lado a lado com ou­tras que se afir­mavam do so­ci­a­lismo, onde está o PS, e que se uniram para impor abu­si­va­mente a trans­for­mação da As­sem­bleia Cons­ti­tuinte em Le­gis­la­tiva.

Cam­panha que era igual­mente pro­mo­vida no plano in­ter­na­ci­onal e que a ar­di­losa Fal­laci visa cre­di­bi­lizar. Uma “en­tre­vista” que é uma fa­lácia, trun­cada do prin­cípio ao fim, para mos­trar que o PCP «não acei­tava o jogo das elei­ções», co­lo­cando na boca de Álvaro Cu­nhal afir­ma­ções que ja­mais se­riam por si pro­nun­ci­adas. Bas­taria ler a in­tro­dução da en­tre­vista e com­parar as opi­niões ali ex­pressas por Fal­laci, em jeito de ba­lanço acerca do pen­sa­mento de Álvaro Cu­nhal, no qual apenas en­con­trava «o re­púdio total das li­ber­dades de­mo­crá­ticas» e como única opção para Por­tugal, a es­colha entre «di­ta­dura do pro­le­ta­riado ou fas­cismo» – duas ver­go­nhosas men­tiras – e ver como co­lidem com tudo o que eram as in­ter­ven­ções pú­blicas sobre elei­ções, li­ber­dade e de­mo­cracia, ex­pressas pelo PCP e o real pen­sa­mento e prá­tica po­lí­tica do seu Se­cre­tário-Geral, para se con­cluir que a “en­tre­vista” era uma en­co­menda en­ve­ne­nada e que Fal­laci era mais que uma sim­ples pro­fis­si­onal da es­crita.

Fal­laci sabia, tal como os fal­si­fi­ca­dores da ori­en­tação do PCP de hoje, que quem se opôs e tudo fez para im­pedir elei­ções e adiá-las para impor uma so­lução re­fe­ren­dária da Cons­ti­tuição não foi o PCP, como in­sinua, mas as forças que co­la­bo­raram nos três der­ro­tados planos gol­pistas de An­tónio Spí­nola, onde es­tava toda a di­reita que hoje se diz de­mo­crá­tica li­beral. Fal­laci sabia bem que o que Álvaro Cu­nhal punha em causa não eram as elei­ções, que as queria ver­da­dei­ra­mente li­vres e que, in­fe­liz­mente, não foram numa grande parte do ter­ri­tório na­ci­onal, mas sim a ten­ta­tiva de usur­pação de um man­dato que o povo não ou­torgou aos de­pu­tados cons­ti­tuintes – o de pro­mover a for­mação de um go­verno.

De facto, nela abundam falsas de­cla­ra­ções, con­ceitos que Álvaro Cu­nhal nunca uti­lizou, nem uti­li­zaria para ca­rac­te­rizar o Por­tugal saído da Re­vo­lução de Abril ou o pro­grama do PCP como «um pro­grama de um Por­tugal co­mu­nista», como está ex­presso e que são uma aber­rante cons­trução da pró­pria, al­gumas das quais ti­nham um ob­jec­tivo muito con­creto, des­pres­ti­giar as forças da Re­vo­lução, en­ve­nenar as re­la­ções do PCP com os seus par­tidos ir­mãos, des­vir­tuar o papel do MFA como força au­tó­noma na Re­vo­lução. Há pas­sa­gens que são de puro de­lírio da au­tora dessa ma­qui­a­vé­lica ma­ni­pu­lação. In­ve­ro­sí­meis na boca de Álvaro Cu­nhal. Nem por ironia, pe­rante a per­gunta se Álvaro Cu­nhal apre­ci­aria os mi­li­tares do MFA, res­pon­deria: «Sim, aprecio-os muito, porque me são ne­ces­sá­rios.»

Álvaro Cu­nhal ja­mais pes­so­a­li­zaria tal re­lação e muito menos na forma uti­li­tária su­ge­rida, nem tão pouco ca­rac­te­ri­zaria os mi­li­tares do MFA, como «sim­pá­ticos e ado­rá­veis». Uma ri­dí­cula fraude! Uma “en­tre­vista” onde abundam muitas ou­tras in­ven­tadas afir­ma­ções, como as que se trans­crevem re­fe­rindo-se de forma so­bran­ceira, pe­sassem as di­fe­renças de ori­en­tação, aos ca­ma­radas es­pa­nhóis e ita­li­anos, como «Oh, pobre Par­tido Co­mu­nista Es­pa­nhol! Ah! Po­bres co­mu­nistas es­pa­nhóis! Como me co­movem! Como sofro por eles!». O mesmo tom, a mesma afir­mação em re­lação aos co­mu­nistas ita­li­anos. Ja­mais o Se­cre­tário-Geral do PCP diria isto! Fal­laci, pe­rante a con­tes­tação do PCP disse que, se fosse pre­ciso, di­vul­gava as cas­setes com a gra­vação. Porém, nunca o fez e, até hoje, nin­guém as viu!



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