América sem rei nem roque
Desta vez, os EUA invadiram os EUA para, alegadamente, salvar os EUA dos próprios EUA. Em flagrante violação da constituição e abrindo mais um perigoso precendente, Trump enviou milhares de militares para a Califórnia. O regime classificou como “rebelião” os protestos contra as redadas massivas de trabalhadores imigrantes para, pela primeira vez desde 1992, federalizar a Guarda Nacional e mobilizar fuzileiros navais para reprimir quem se manifestava contra o terror xenófobo da ICE, a polícia migratória.
De pouco serviram os protestos do governador do Estado, Gavin Newsom, e menos ainda adiantaram os efémeros esforços de alguns tribunais: Trump, que, no sábado, pôs uma parada militar a cantar-lhe os Parabéns a Você, comporta-se como um rei, absoluto e sórdido, para além de quaisquer limites constitucionais ou morais. Mas, como demonstraram centenas de milhares de pessoas, em mais de 2000 manifestações em todos os 50 Estados, o rei vai nu.
Quem, no sábado, saiu à rua para dizer que nos EUA «não há reis» quis denunciar, mais do que o culto da personalidade de Trump, um plano inclinado para um crescente autoritarismo. Os sinais estão por todo o lado: milhares de agentes do ICE caçam trabalhadores imigrantes e as suas famílias nas ruas, invadem-lhes as casas a meio da noite sem qualquer mandado judicial e emboscam-nos à porta das escolas, das fábricas e dos campos agrícolas; milhares de manifestantes desarmados são brutalmente detidos pela polícia e por militares; entre os detidos está David Huerta, presidente do SEIU Califórnia, o maior sindicato do Estado; Alex Padilla, um senador democrata que ousa questionar a secretária de Segurança-Interna, Kristi Noem, é atirado ao chão à frente das câmaras e manietado; a deputada estadual, Melissa Hortman, e o seu marido são assassinados em casa por um indivíduoque, de seguida, tenta assassinar outro congressista; a Casa Branca partilha na internet um cartaz criado por um nazi que apela a que se «denuncie às autoridades todos os invasores estrangeiros».
Tempos houve em que um capitalismo jovem e vigoroso jurava querer super-estruturas políticas democráticas, republicanas e constitucionais. Sinal do seu envelhecimento escleroso, os gestores dos Estados capitalistas tenderão a parecer-se cada vez mais como os reis de antanho porque a procura de lucros já não é compatível sequer com declarações de liberdade, igualdade nem, muito menos, fraternidade. Ao mesmo tempo que aprova borlas fiscais para os milionários, Trump prepara-se para fazer o maior corte de sempre às despesas sociais do Estado federal e atirar para a miséria milhões de trabalhadores. Esta transferência de rendimentos do trabalho para o capital requer doses formidáveis de medo e de violência: é necessário que os imigrantes sejam perseguidos, detidos, separados das famílias e que, à última da hora, haja esta actual decisão, temporária e arbitrária em iguais medidas, de não os deportar, se trabalharem em certos sectores estratégicos.
É preciso que toda a gente tema pela vida antes de protestar, fazer greve, criticar ou dizer que não. É preciso que os trabalhadores que vão ficar ainda mais pobres estejam treinados para culpar o seu vizinho imigrante, ou seu colega negro, ou os chineses, ou o Irão, mas nunca o grande patronato.