«Prenda de Deus»

Luís Carapinha

A purga de Er­dogan não se cir­cuns­creve aos mi­li­tares e à po­lícia

Os acon­te­ci­mentos na frente in­ter­na­ci­onal su­cedem-se a um ritmo quase alu­ci­nante no que vai deste verão quente se­ten­tri­onal. Bas­taria re­ferir, por ordem cro­no­ló­gica: o ter­ra­moto do Brexit e as suas longas ondas de choque; o aten­tado ter­ro­rista no ae­ro­porto de Is­tambul após o anúncio da re­ac­ti­vação das re­la­ções da Tur­quia com a Rússia; o mais mor­tí­fero ataque ter­ro­rista da úl­tima dé­cada em Bag­dade; a Ci­meira de Var­sóvia da NATO e a ob­sessão mi­li­ta­rista contra a Rússia; a vi­tória do par­tido de Abe nas elei­ções para a Câ­mara Alta do Japão; a de­cisão do de­sa­cre­di­tado Tri­bunal de Haia sobre o di­fe­rendo ter­ri­to­rial no mar do Sul da China e a in­ten­si­fi­cação do «Pivot para a Ásia» dos EUA vi­sando a con­tenção da China; a de­missão de David Ca­meron; a ter­rível ma­tança de Nice no Dia da Bas­tilha, se­guido da pror­ro­gação do es­tado de emer­gência que vi­gora desde No­vembro; e, por fim, a ten­ta­tiva frus­trada de golpe de Es­tado mi­litar na Tur­quia, país com o se­gundo maior exér­cito da NATO.

Dis­tintos acon­te­ci­mentos que res­pondem a uma si­tu­ação in­ter­na­ci­onal sa­tu­rada de con­tra­di­ções e com­ple­xi­dade. Com um de­no­mi­nador comum em pano de fundo: o agra­va­mento da crise es­tru­tural do ca­pi­ta­lismo e o sério risco de um novo es­ta­lido fi­nan­ceiro global, de pro­por­ções su­pe­ri­ores à re­cessão de 2008-2009, con­si­de­rada a crise mais grave do ca­pi­ta­lismo desde a Grande De­pressão.

 

Por tudo o que está em causa num país ne­vrál­gico para a ge­o­po­lí­tica mun­dial, membro pro­e­mi­nente da NATO, o putsch go­rado na Tur­quia é um acon­te­ci­mento de enorme re­levo. Re­corde-se que a che­gada do Par­tido da Jus­tiça e De­sen­vol­vi­mento (AKP) ao poder em 2003 não deixa de re­flectir (e ca­na­lizar) o sen­ti­mento po­pular de re­jeição de dé­cadas de di­ta­dura mi­litar. O quadro con­creto do golpe der­ro­tado com um saldo de cerca de 300 mortos não é claro. Con­tudo, as suas con­sequên­cias são já vi­sí­veis. Antes de mais, Er­dogan e o poder re­ac­ci­o­nário do AKP, man­tendo ca­pa­ci­dade de apelar ao su­porte nas ruas, apro­veitam a si­tu­ação para re­cau­chutar a sua le­gi­ti­mi­dade e, so­bre­tudo, apro­fundar con­si­de­ra­vel­mente o rumo po­pu­lista, au­to­crá­tico e re­pres­sivo. Er­dogan apressou-se a de­clarar que o golpe abor­tado cons­titui uma «prenda de Deus» que lhe per­mi­tirá pro­ceder a uma pro­funda lim­peza das forças ar­madas.

Mas a purga não se cir­cuns­creve aos mi­li­tares e à po­lícia. Abrange a Jus­tiça e muito pro­va­vel­mente es­tender-se-á ao campo po­lí­tico, acen­tu­ando a res­trição da li­ber­dade de ex­pressão e linha per­se­cu­tória fas­ci­zante que se in­ten­si­ficou com o en­vol­vi­mento na agressão à Síria e o apoio aos grupos ter­ro­ristas. Há porém outro ele­mento so­nante e ex­plo­sivo que marca este golpe: as sus­peitas de en­vol­vi­mento dos EUA. O co­man­dante turco da base de In­cirlik foi preso e o es­paço aéreo em redor da base que também al­berga forças da NATO e armas nu­cle­ares tác­ticas dos EUA es­teve en­cer­rado. O se­cre­tário de Es­tado, Kerry, viu-se obri­gado a re­jeitar as in­si­nu­a­ções de par­ti­ci­pação dos EUA na in­ten­tona. An­cara exige a ex­tra­dição dos EUA do clé­rigo Fethullah Gulen, an­tigo com­pagnon de route de Er­dogan na cru­zada ne­o­to­ma­nista e anti-se­cular, que acusa da or­ga­ni­zação do golpe. Di­versos ana­listas iden­ti­ficam em Gullen um ac­tivo da CIA na ma­nobra do im­pe­ri­a­lismo no Cáu­caso e Ásia Cen­tral.

 

Dos EUA e UE, so­bre­tudo, res­soam avisos ao aliado da NATO sobre o «Es­tado de di­reito». A emer­gência de ten­sões e con­tra­di­ções in­tes­tinas no campo im­pe­ri­a­lista é um dos traços em evi­dência na ac­tual ins­tável con­jun­tura. O caso da Tur­quia, com o ema­ra­nhado feixe de cum­pli­ci­dades, di­ver­gên­cias e cho­ques em pre­sença – co­me­çando pelo do­mínio do grande ca­pital trans­na­ci­onal sobre a sua eco­nomia e ter­mi­nando no efeito de­to­nador do fra­casso da guerra de in­ter­venção na Síria, in­capaz de con­cre­tizar o seu prin­cipal ob­jec­tivo –, é um ele­mento sa­li­ente a reter e se­guir aten­ta­mente.

 



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