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O sentido religioso do voto (4 e 5)

RELIGIÕES  • Jorge Messias

 

Sumariamente pode dizer-se que quando as grandes religiões esgotam os seus ciclos vitais apagam-se tal como quaisquer outras formas de vida. Na realidade não é tanto assim. Ao dar-se o seu desaparecimento, as grandes religiões já trocaram com outras instituições muitos dos seus traços fundamentais. Mais, ainda : deixaram marcas profundas nas culturas dos povos nas quais insinuaram mitos e dogmas invisivelmente inscritos como modelos na memória comum. As religiões são, neste sentido, parte de uma herança histórica e cultural do homem.

Eventualmente será difícil a qualquer de nós ignorar como são interactivas, no presente, as estratégias das religiões, das políticas e das economias. As religiões fornecem fórmulas sacramentais retiradas dos nichos da sua tradição. São «clichés» que passam nos códigos de comportamento da humanidade sem sequer serem notados. O capital concentra-se e tritura tudo à sua frente, assumindo-se depois como um culto institucional organizado em torno da sacralização dos mercados. As políticas do poder, anteriormente identificadas com as ideologias, instalam-se abertamente como representantes dos interesses constituídos em lobbies e liturgias da bolsa e do lucro. Quanto ao povo comum (a estirpe de ferro) os comportamentos do poder são de alternância: é reprimido fisicamente, nos casos em que as lutas de classe se agudizam. Noutras situações é sistematicamente enganado, através da apropriação, por parte das estirpes do ouro e da prata, das ideias e das palavras que traduzem as suas mais íntimas aspirações e esperanças.

É nesta área que nos procuraremos concentrar. Nos aspectos religiosos que o voto popular assume sem disso se aperceber. Reconhecendo de antemão, como é evidente, que numa perspectiva marxista o voto consciente continua a representar uma importante ferramenta de transformação da sociedade. E tendo, por outro lado, a noção terra-a-terra de que é cada vez mais fácil induzir em erro o voto do cidadão. Basta usar palavras esvaziadas de conteúdo e dominar os meios de comunicação social. Para afirmar posições o capitalismo apoia-se sistematicamente no religioso e no discurso canónico conhecido. Nota-se, por exemplo, como ao longo da história das magias, das religiões e das instituições, se desenvolve uma linha pedagógica programática apoiada em valores que se opõem (Noite/Dia, Bem/Mal, Ordem/Caos, Caridade/Impiedade, Ódio/Perdão, Verdade/Mentira, Egoísmo/Altruísmo), alguns com componentes sobretudo devocionais, outros com uma nítida carga moral e política. É esta herança que vamos encontrar oculta por detrás dos atraentes conceitos propostos pelo poder capitalista quando se dirige à opinião pública e lhe fala em paz, entendimento, reconciliação de classes, unidade, liberdade, direitos humanos, cidadania, etc.. São palavras bem aceites por quantos aspiram à harmonia e à justiça social.

Basta, porém, um pequeno passo e a mentira revela-se em toda a sua extensão. O dia, o bem, a ordem, a caridade, o perdão, a verdade ou o altruísmo que o poder propagandeia são afinal valores de fachada que procuram ocultar a prática efectiva que promove a noite, o mal, o caos, a impiedade, o ódio, a mentira e o mais feroz egoísmo. As promessas eleitorais não são cumpridas, é cada vez mais profunda a fenda que separa os que têm dos que não têm e, dia a dia, rasgam-se e reduzem-se a pó as ideologias, as leis democráticas, a Constituição e o significado inicial das instituições. Tudo isto por entre o teatral bater no peito e o arrancar de cabelos dos oradores de serviço.

A Revolução de Abril e as suas conquistas deixam então de fazer qualquer sentido. O debate parlamentar, a eleição e o voto, revelam-se verdadeiras farsas. Morreram as ideologias e «acabou-se a história». O paraíso na Terra, construído à força de pulso, é uma utopia insustentável. Só há paraíso no céu. Este cenário, para o qual caminhamos em Portugal, só se tornará possível se conscientemente nos deixarmos enganar. Se tomarmos o voto como uma ingénua afirmação de fé e não lhe dermos o seu real significado de arma poderosa conquistada pelo povo e para o povo a que pertencemos. Se dermos ao voto um sentido religioso.

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Se olharmos num quadro religioso a estrutura do voto revelada em recentes eleições, veremos haver nela um dado que atrai imediatamente as atenções. É que, no eleitorado português, existe uma grande massa de votos que se desloca ao acaso do oportunismo com que os partidos sabem acenar com seculares ideias feitas, profundamente enraizados no nosso inconsciente: harmonia, estabilidade, coerência, realismo, verdade, etc. Valores que - uma vez os votos contados - serão imediatamente esquecidos pelo vencedor. Mas que representam expressões sacramentalizadas da cultura colectiva do nosso povo. Embora, como sabemos, o voto seja laico e não canónico. Não exprima uma liturgia ou o acatamento de um dogma. Não represente, sequer, um desempenho que se justifique em si mesmo. Porque, a função de votar somente exprime a intenção pessoal de participação nas grandes questões nacionais. Quando votamos, procuramos ser o reflexo das aspirações daqueles que integram o grupo social para nós predominante. Dos ricos ou dos pobres, dos poderosos ou dos oprimidos. O nosso voto é um voto de classe. É porém necessário que o sentido do nosso voto seja coerente com a nossa prática : consciente e livre, ligado à vontade das massas populares, verdadeira extensão da nossa acção concreta. Declaramos no voto que sociedade escolhemos como projecto daquela que queremos ajudar a erguer. Mas sustentamos, depois, a nossa vontade expressa, com a acção directa, partidária ou de cidadania, a única forma de agir que pode mudar a face do mundo.

É claro que, se o voto é intenção que parte da acção e a determina, a abstenção representa um acto condenável. O democrata, o comunista, jamais se abstêm. Para eles, intervir é imperativo moral. O seu voto é insubstituível : tem a carga plena da revolução. Fingir que não se vê, fechar os olhos ao que bem se entende, guardar «para depois», ceder a outros a força da nossa voz, são actos indesculpáveis. O voto é parte da nossa luta. Lutamos e sabemos por quê. Ninguém fará por nós, nas tarefas que aceitámos, o trabalho que nos compete desempenhar. Posto isto, bem se sabe que o campo de manobras oferecido pelas tradições que o povo a que pertencemos consigo transporta tem sido - e ainda assim será por algum tempo mais - terreno propício à manipulação gerida por poderosas forças religiosas ou laicas. Nesses casos, a religiosidade difusa contida na tradição é abertamente substituída pela autoridade invocada, pela religião e pela doutrina, como instrumento político. Refira-se neste sentido, por exemplo, a nota pastoral «Sobre o próximo acto eleitoral», emitida em 13 de Fevereiro de 2002 pelo Conselho Permanente da Conferência Episcopal Portuguesa. Divide-se em cinco pontos, o primeiro dos quais o episcopado considera ser uma introdução. Nele afirmam os bispos portugueses não reivindicarem «para a hierarquia uma função política», nem se quererem «imiscuir nas justas opções partidárias». Intenção que, logo em seguida, no ponto 2 («Sentido especial das próximas eleições»), é claramente desmentida. Aí, a igreja institucional adopta as perspectivas do movimento de globalização capitalista: as próximas eleições terão as características de um referendo, foram precipitadas pelos atentados de Nova Iorque, pela crescente insegurança internacional e em virtude da entrada em vigor do euro e do alargamento da Europa comunitária. Logo, razões externas a Portugal, de ordem político-financeira. Depois, no ponto 3 («É necessário o discernimento»), declara-se que o voto dos cristãos (leia-se católicos, visto que cristãos aqui é abusivo) deve continuar a tentar acertar com uma atitude eleitoral correcta «em ordem à nossa realização e à edificação de uma sociedade harmónica digna do homem, como Deus o deseja». No ponto 4 («Exigências do discernimento cristão») - uma vez mais os bispos católicos permitem-se falar em nome de toda a cristandade - enumerando aspectos que a hierarquia considera fundamentais para justificar o voto católico. Destaca-se o «carácter sagrado da vida humana» (atitude em relação ao aborto) e «o carácter das políticas de educação» (área-chave da qual a igreja não abdica). Finalmente, no ponto 5 («Coerência e convivência»), os bispos tentam ganhar simpatias da opinião pública para as suas tomadas de posição. Falam com as palavras redondas habituais.

«Avante!» Nº 1475 - 7.Março.2002