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Tempo de gestação

CIÊNCIA & TECNOLOGIA  • Francisco Silva


Tudo tem que andar sempre mais depressa. Se possível a propagação deve ser instantânea. Para quando precisava disto? Para anteontem. Just in time, a produção só é efectuada de acordo com as variações instantâneas da procura. Não, não às existências em armazém, já viu quanto custa a armazenagem? As transacções financeiras? Essas fazem-se instantaneamente em todos os pontos do globo ao mesmo tempo. Como se já não existisse nem tempo, nem o próprio espaço. Colapsaram - verbo estranho este! -, tanto o tempo como o espaço. E vai de filosofar desvairadamente sobre esta problemática. Se calhar não existo mesmo, mesmo continuando a pensar, como poderia raciocinar Descartes (o mesmo Descartes do Erro do Damásio). Como poderia ainda existir - eu, os outros ou mesmo qualquer outra coisa - tendo o espaço e o tempo, entretanto, colapsado?

E, no entanto, as plantas continuam a levar o seu tempo para crescer e germinar, as crias dos animais não viram ainda colapsar o tempo de gestação no seio das suas mães. A Terra continua a levar um ano para percorrer a sua órbita em torno do Sol e um dia para completar uma rotação sobre si mesma. As digestões das refeições ainda não são instantâneas. E mesmo com a moderna tecnologia dos aviões a jacto, o meu voo entre Lisboa e Madrid dura uns 50 minutos.

Mas o certo é as pessoas terem passado a viver com um certo sentimento que quase não é preciso tempo para realizar as coisas.

Talvez por isso, tiveram de embarcar os mais altos gestores e políticos europeus na fuga para a frente dos timings de entrada ao serviço da 3ª geração de telemóveis (UMTS), a qual segundo rezavam esses prazos já por meados de 2001 deveria ser uma realidade. E nem sequer estou a insinuar que muitos daqueles gestores e políticos acreditassem piamente nos prazos curtíssimos que foram adiantados para a implementação comercial dos serviços UMTS. Neste caso a questão é outra. Mesmo não se estando convencido com o processo, a verdade é que o diabo pode acabar por torcê-las, isto é, as coisas correrem como os mais optimistas disseram e quem tivesse o bom senso de ser cuidadoso acabar por chegar atrasado e perder o oportunidade e, por tal, ser incriminado. Concordo. Os ambientes criados são de tal natureza que não é de todo aconselhável andar longe dos actuares da manada enlouquecida.

E, no entanto, o UMTS é uma tecnologia complexa que, seria normal pensar, deveria levar o seu tempo a amadurecer. Os trabalhos relativos à produção das correspondentes normas - processo que, para ser eficaz, se deve desenrolar por um trajecto pouco distanciado do processo de desenvolvimento tecnológico - exigiram mesmo a construção de uma organização «ad-hoc» global dedicada a este sistema1. Esta organização, tornada necessária pela dimensão do que estava por diante, permitiu a articulação de actividades da Europa, do Japão, da Coreia, da RP da China e dos EUA. Tornou-se também, em termos de volume de massa cinzenta de cientistas e tecnólogos, a actividade de normalização principal na área das telecomunicações. Por si só, esta actividade, ultrapassa os outros projectos todos juntos. Mas, por maiores que sejam os recursos envolvidos, seja no desenvolvimento seja na normalização, estas coisas levam o seu tempo a ser geradas e a amadurecer até poderem ser consideradas prontas dos pontos de vista industrial e comercial.

O curioso é que isto que se escreveu toda a gente o pode saber. Por exemplo, as datas do processo de normalização são publicas e os ainda não se atrasaram. Basta ir aos respectivos sítios da web. Então, como foi possível estabelecer um ambiente tal, e de uma persuasão tão omnisciente, que arrebatou por completo políticos, gestores, altos funcionários? Como conseguiram consultores, financeiros e comerciais «montar» tal esquema e, de acordo coma moda, quase fazer esquecer que era necessário deixar escoar o tempo que fosse preciso, como acontece com os nove meses de gestação requeridos pelos bebés da nossa espécie.

Se calhar muitos técnicos não tiveram a coragem suficiente para fazer ouvir a sua voz. Eles são actualmente a parte mais fraca do sistema. Dinossauros complicados, sim, estes técnicos. Porque, afinal, tudo acaba por se resumir no vai e vem das cotações das acções e nos negócios de compras, vendas, fusões e, sobretudo nos cortes nos custos… Os técnicos e os seus perfeccionismos só estão aí para empatar o tempo, não é essa a onda do momento?.

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Para os mais curiosos, a Organização denomina-se 3rd Generation Global Partnership Project (3GPP).

«Avante!» Nº 1475 - 7.Março.2002