Venezuela petróleo & golpe

Pedro Campos

«… O sim­ples facto da na­ci­o­na­li­zação do pe­tróleo também não nos fez in­de­pen­dentes. Mantém-se a nossa de­pen­dência e, pro­va­vel­mente, ainda com mai­ores riscos do que ontem. Faço esta ob­ser­vação porque acho meu dever como chefe do Es­tado chamar a atenção de todos os ve­ne­zu­e­lanos para que en­ten­damos como são com­plexas e ao mesmo tempo ur­gentes as ta­refas de com­pletar a na­ci­o­na­li­zação do pe­tróleo, para que seja re­al­mente um ins­tru­mento de li­ber­tação e não con­tinue a ser um sinal de de­pen­dência. Se é certo que estão nas nossas mãos as em­presas do pe­tróleo e a sua gestão de­pende das nossas de­ci­sões, não mudou nada, ab­so­lu­ta­mente nada, o mar­ke­ting, a co­mer­ci­a­li­zação dos hi­dro­car­bo­netos. De­pen­demos das trans­na­ci­o­nais.»

Sur­pre­en­den­te­mente, ou talvez não, estas pa­la­vras, pro­fe­ridas em 1976, não cor­res­pondem a um líder da es­querda mas a um apai­xo­nado ne­o­li­beral, cada vez mais com­pro­me­tido com o im­pe­ri­a­lismo, ainda que al­gumas vezes com certos ar­re­bates ter­ceiro-mun­distas: Carlos An­drés Pérez. Nesse ano e sendo pre­si­dente da Re­pú­blica num ce­nário in­ter­na­ci­onal com uma cor­re­lação de forças par­ti­cu­lar­mente fa­vo­rável, ne­go­ciou com as em­presas con­ces­si­o­ná­rias a na­ci­o­na­li­zação do pe­tróleo ve­ne­zu­e­lano. Foi cer­ta­mente uma na­ci­o­na­li­zação, mas Juan Pablo Pérez Al­fonso, fi­gura fun­da­mental na cri­ação da Or­ga­ni­zação de Países Pro­du­tores de Pe­tróleo (OPEP) – apesar de cor­re­li­gi­o­nário de Pérez – não de­mo­raria muito em con­si­derá-la «chu­cuta», mo­dismo local para «apou­cada» ou «pu­si­lâ­nime».

Para acen­tuar as des­van­ta­gens da de­pen­dência eco­nó­mica e da in­ca­pa­ci­dade de co­mer­ci­a­li­zação pró­pria, con­ti­nu­aram à frente dos des­tinos do pe­tróleo ve­ne­zu­e­lano os ges­tores de topo que, du­rante anos, ti­nham tra­ba­lhado para as com­pa­nhias es­tran­geiras e in­te­ri­o­ri­zado a fi­lo­sofia an­ti­na­ci­onal das mesmas – norte-ame­ri­canas e também anglo-ho­lan­desas –, assim como todos os há­bitos de sub­missão aos in­te­resses do ca­pital im­pe­ri­a­lista. Na sua es­ma­ga­dora mai­oria, eram mentes de­vi­da­mente co­lo­ni­zadas e au­tên­ticos ca­valos de Tróia, cujo pen­sa­mento e acção se pau­taram, sempre, no sen­tido da re­pri­va­ti­zação da in­dús­tria. Em função deste ob­jec­tivo, tra­ba­lharam in­can­sável e sis­te­ma­ti­ca­mente para impor como me­lhor po­lí­tica a do au­mento des­con­tro­lado da pro­dução e ex­por­tação do crude e dos in­ves­ti­mentos rui­nosos, sem dis­si­mular a sua ani­mo­si­dade contra a OPEP, que con­si­de­ravam con­trária aos seus in­te­resses. Esta linha de acção, mi­li­me­tri­ca­mente de­se­nhada e ins­tru­men­ta­li­zada, co­locou tais quan­ti­dades de ex­ce­dentes no mer­cado que o preço do barril chegou a um mí­nimo nunca visto de pouco mais de 7 dó­lares. A ter-se con­ti­nuado com esta po­lí­tica cri­mi­nosa contra a prin­cipal ri­queza na­tural do país, ela teria pro­vo­cado a fa­lência de Pe­tró­leos de Ve­ne­zuela, S. A. (PDVSA) – a casa ma­triz pe­tro­lí­fera – e es­taria en­con­trada a des­culpa per­feita para vendê-la, a preço de uva mi­jona, a qual­quer trans­na­ci­onal, pre­fe­ri­vel­mente do «co­losso do Norte».

 

Planos fu­rados

 

Em 1999, a vi­tória elei­toral das forças pro­gres­sistas deu origem ao go­verno de Hugo Chávez e furou os planos da re­acção na­ci­onal e in­ter­na­ci­onal. É esta cir­cuns­tância que está na origem da im­pla­cável cam­panha me­diá­tica – plena de ma­ni­pu­lação e sal­pi­cada fre­quen­te­mente de terror psi­co­ló­gico e fí­sico sobre a po­pu­lação – que levou ao golpe de es­tado de 11 de Abril de 2002, pre­ci­sa­mente a ca­valo desses ges­tores da in­dús­tria pe­tro­lí­fera que, no fundo, não passam de peões nesta guerra pelo con­trolo do pe­tróleo da re­gião.

Os Quirós Cor­radi – gol­pista e sig­na­tário da acta me­di­ante a qual Car­mona Es­tanga se au­to­pro­clamou pre­si­dente da Re­pú­blica -, Sosa e Luís Giusti, entre ou­tros ex-capos da PDVSA, não são mais do que os fiéis con­ti­nu­a­dores da traição ini­ciada por Ma­nuel An­tónio Matos. Quem foi esta fi­gura si­nistra de co­meços do sé­culo pas­sado? Ge­neral e ban­queiro, além de la­caio do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano, en­ca­beçou, entre 1901 e 1903, uma guerra civil vi­o­len­ta­mente cruel, que per­mitiu ao ca­pital pe­tro­lí­fero in­ter­na­ci­onal ma­ni­festar-se com uma más­cara sim­pá­tica que es­condia um rosto me­donho. Com o apoio fi­nan­ceiro das em­presas in­ter­na­ci­o­nais di­rigiu um mo­vi­mento mi­litar que tomou o nome de Re­vo­lução Li­ber­ta­dora mas fi­caria para a his­tória como a Guerra do As­falto. Ci­priano Castro, pre­si­dente de então e também ge­neral, der­rotou-o no campo de ba­talha. Con­tudo, poucos anos de­pois, Castro aca­baria der­ro­tado pelo san­gui­nário di­tador Juan Vi­cente Gómez, igual­mente ge­neral, e Matos seria pre­miado com o lugar de chan­celer.

 

Me­ri­to­cracia ou mi­to­cracia

 

Ao longo das úl­timas dé­cadas, a mai­oria destes ge­rentes de pri­meira linha e muitos ou­tros tec­no­cratas de ní­veis hi­e­rár­quicos in­fe­ri­ores, auto-em­bru­lharam-se numa au­réola de me­ri­to­cracia que te­o­ri­ca­mente os le­vi­taria, não só acima de quais­quer ou­tros pro­fis­si­o­nais, como os re­ves­tiria com um selo de in­subs­ti­tuí­veis. Além disso, sa­be­dores de que o país de­pendia quase to­tal­mente da in­dús­tria pe­tro­lí­fera para so­bre­viver, con­se­guiram, sob a ori­en­tação das forças da oli­gar­quia e a cum­pli­ci­dade do poder po­lí­tico en­tre­guista, trans­formar a PDVSA numa caixa negra onde era im­pos­sível pe­ne­trar e cuja ad­mi­nis­tração não era su­per­vi­si­o­nada por ou­tros que não fossem eles, que fa­ziam e des­fa­ziam ne­gó­cios e ne­go­ci­atas se­gundo os seus in­te­resses abas­tar­dados. Como o de­finiu um pre­si­dente an­te­rior a Hugo Chávez, trans­for­maram a PDVSA «num es­tado dentro do es­tado», to­tal­mente im­pe­ne­trável. Esta si­tu­ação tornou-se tão ca­ri­cata que acre­di­taram se­ri­a­mente – acre­ditam, ainda – que devem ser eles e não o dono da em­presa, o Es­tado, ac­ci­o­nista único, quem a deve di­rigir e no­mear o res­pec­tivo con­selho de ad­mi­nis­tração.

De­vi­da­mente feitas as contas, desta ale­gada me­ri­to­cracia não fica mais do que uma mi­to­cracia es­can­da­losa. Não só fi­zeram descer o preço do crude a mí­nimos in­su­por­tá­veis – pés­simo ne­gócio para o país ex­por­tador mas ex­ce­lente para o prin­cipal im­por­tador, os Es­tados Unidos – como de­mons­tram ser ad­mi­nis­tra­dores me­dío­cres, para pôr a questão com certa ele­gância. Al­guns exem­plos. Se­gundo o es­pe­ci­a­lista Fran­cisco Mi­eres, «no seu pri­meiro ano, 1976, a PDVSA sig­ni­ficou para o fisco 76 por cento das suas re­ceitas; no úl­timo ano de Giusti, 1998, só 13 por cento, en­quanto os preços caíram a 7 dó­lares por barril e os ga­nhos da PDVSA ao mí­nimo da dé­cada». Uma rou­ba­lheira à nação.

Se com­pa­rarmos os custos ope­ra­tivos da PDVSA com os da Exxon, Shell, Te­xaco ou BP Amoco, vemos que são muitos mais ele­vados. Pra­ti­ca­mente tri­plicam os da Exxon, a de pi­ores re­sul­tados entre as ou­tras quatro. Ana­li­sando a pro­du­ti­vi­dade por tra­ba­lhador cons­ta­tamos, uma vez mais, os «va­lores» desta mi­to­cracia adita ao golpe de es­tado. A re­lação é, no me­lhor dos casos, de 1 a 2, ou seja que qual­quer das ou­tras tem o dobro ou mais da pro­du­ti­vi­dade da em­presa ve­ne­zu­e­lana. Em qual­quer firma ca­pi­ta­lista que se res­pei­tasse, es­ta­riam todos no olho da rua.

Em termos de ven­ci­mentos, isso sim, os ges­tores gol­pistas tra­tavam-se muito bem. Em 2001, um total de 870 ges­tores de topo – dos quais 650 a tra­ba­lharem em Ca­racas onde não se produz uma só gota de pe­tróleo – pa­garam-se or­de­nados e bo­ni­fi­ca­ções no valor de 208 mi­lhões de dó­lares. No mesmo ano, 18 200 fun­ci­o­ná­rios, entre ope­rá­rios e ou­tros tra­ba­lha­dores dos es­ca­lões in­fe­ri­ores, re­ce­beram 762,5 mi­lhões de dó­lares. Feitas as res­pec­tivas contas, cada gestor de topo teve um ven­ci­mento 57 vezes su­pe­rior ao de um tra­ba­lhador de base con­si­de­rado in­di­vi­du­al­mente. A lei da rolha.

 

A fraude salta as fron­teiras

 

Entre ou­tros ana­listas, Juan Carlos Boué, doutor da Uni­ver­si­dade de Ox­ford, de­dicou al­guns es­tudos ao pro­cesso de in­ter­na­ci­o­na­li­zação da in­dús­tria pe­tro­lí­fera ve­ne­zu­e­lana e o que ela sig­ni­ficou de ca­la­mi­toso para o país. Umas das fraudes mais em­ble­má­ticas chama-se Citgo, em­presa norte-ame­ri­cana que os mi­to­cratas da PDVSA de­ci­diram com­prar quando já não era uma em­presa pú­blica, não es­tava na Bolsa e não era pos­sível ana­lisar-lhe os es­tados fi­nan­ceiros. Uma parte da Citgo – que me­re­cerá um texto mais amplo noutra opor­tu­ni­dade – foi ad­qui­rida em 1986 e outra quatro anos de­pois. Opera duas re­fi­na­rias, mais de 15 mil es­ta­cões de ser­viço nos Es­tados Unidos e em 1997 des­fru­tava do pri­meiro lugar como ven­de­dora de ga­so­lina para au­to­mó­veis. Isso sim, com uma po­lí­tica de preços ca­tas­tró­fica que os tornou nos mais baixos do mer­cado. Adi­ci­o­nal­mente, nunca existiu ne­nhum con­trolo ou fis­ca­li­zação do ne­gócio pela parte ve­ne­zu­e­lana. Outro as­pecto cu­rioso é que essas re­fi­na­rias pro­cessam muito pouco crude ve­ne­zu­e­lano, tra­ba­lhando fun­da­men­tal­mente com pro­duto de ou­tros países.

J. C. Boué re­sume esta si­tu­ação afir­mando que se trata de «um dos mai­ores mo­vi­mentos in­ter­na­ci­o­nais de ca­pital na di­recção Sur-Norte». Em nú­meros re­dondos, estes in­ves­ti­mentos er­rados em 19 re­fi­na­rias nos Es­tados Unidos e na Eu­ropa atin­giram a bo­nita cifra de 10 mil mi­lhões de dó­lares, que se per­deram numa in­ter­na­ci­o­na­li­zação de­sas­trada e fre­quen­te­mente sal­pi­cada de fal­ca­truas.

Com uma gestão his­to­ri­ca­mente tão an­ti­na­ci­onal da que é, sem sombra de qual­quer dú­vida, a in­dús­tria fun­da­mental – e quase única – do país, não se pode es­tra­nhar que a Ve­ne­zuela man­tenha uns ní­veis de po­breza al­tís­simos e di­fí­ceis de con­ceber na Eu­ropa. O es­critor Ar­turo Uslar Pi­etri – ex can­di­dato pre­si­den­cial e também ele re­pre­sen­tante dos «amos do vale» – não du­vidou em des­tacar que, ao longo das dé­cadas mais re­centes, as classes do­mi­nantes be­ne­fi­ci­aram de al­guma coisa como 260 mil mi­lhões de dó­lares, o que é igual a vinte vezes o valor dos 13 mil mi­lhões de dó­lares que os norte-ame­ri­canos gas­taram na Eu­ropa do após guerra para ajudar à sua re­cons­trução e im­pedir o avanço das forças pro­gres­sistas.

Onde foi parar essa imensa for­tuna? Num país que um pre­si­dente da IV Re­pú­blica de­finiu como de «em­pre­sá­rios de su­cesso com em­presas fa­lidas», esse di­nheiro está em grande parte no es­tran­geiro, onde ban­queiros cor­ruptos, be­ne­fi­ciá­rios de ne­gó­cios com o Es­tado e po­lí­ticos cúm­plices têm acu­mu­lados mi­lhares de mi­lhões de dó­lares su­fi­ci­entes para pagar co­mo­da­mente a dí­vida ex­terna do país que eles mesmos ar­rui­naram com total im­pu­ni­dade.

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Obras con­sul­tadas:

PDVSA y el Golpe, vá­rios au­tores
Dic­ci­o­nario del Pe­tróleo Ve­ne­zo­lano, Aníbal R. Mar­tínez
El Golpe de Es­tado del 11 de Abril, Guil­lermo García Ponce
Cro­no­logía del Pe­tróleo Ve­ne­zo­lano, Aníbal R. Mar­tínez



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