Os clubes populares e o embuste

A. Mello de Carvalho

A «ex­plosão» na cri­ação de novos clubes po­pu­lares ve­ri­fi­cada logo após o 25 de Abril de 1974 ins­creve-se na pre­o­cu­pação das massas po­pu­lares em ace­derem a um pro­cesso de vida so­cial mais de­mo­crá­tico, com maior jus­tiça so­cial, e à es­tru­tu­ração de novos meios para a sua edu­cação, de­sen­vol­vi­mento cul­tural e in­ter­venção so­cial. Todos nós sa­bemos como estas ex­pec­ta­tivas evo­luíram e, por isso, não ad­mira que a des­crença e a falta de pers­pec­tivas fu­turas mar­quem for­te­mente a ati­tude dos di­ri­gentes as­so­ci­a­tivos. As di­fi­cul­dades ma­te­riais co­me­çaram, logo al­guns anos de­pois, a lançar as raízes da crise ac­tual, tanto mais que é in­des­men­tível que tudo ou quase tudo tem sido feito para im­pedir a afir­mação do clube po­pular como uni­dade di­nâ­mica e di­na­mi­za­dora da vida so­cial local.

Esta si­tu­ação, para ser bem com­pre­en­dida no seu sig­ni­fi­cado pro­fundo, tem de passar pela cla­ri­fi­cação dos in­te­resses que im­pe­diram o apa­re­ci­mento e a con­so­li­dação de todas as novas formas de or­ga­ni­zação po­pular (por isso foi li­qui­dado o «mo­vi­mento po­pular de base» e se deixou de apoiar a acção de­sen­vol­vida pelos clubes po­pu­lares). Um im­por­tante con­junto de meios po­de­rosos, in­te­grando, com um papel cen­tral, a acção dos meios de in­for­mação (os tão pro­pa­lados mass media), são mo­bi­li­zados quo­ti­di­a­na­mente para pro­mover a ato­mi­zação da vida so­cial, o afas­ta­mento dos in­di­ví­duos entre si e a li­qui­dação das formas reais da so­li­da­ri­e­dade.

Tudo isto pro­cura jus­ti­ficar-se através da te­oria do «Es­tado a mais» e a sub­sídio-de­pen­dência, para ex­plicar a falta de apoio aos pe­quenos clubes de bairro e de al­deia. Ao mesmo tempo gritam per­ma­nen­te­mente que há crise no As­so­ci­a­ti­vismo, e é essa crise que jus­ti­fica que não se lhes for­neçam os meios in­dis­pen­sá­veis para ac­tu­arem com maior efi­cácia. Desta forma vê-se com cla­reza a ex­tensão e gra­vi­dade do em­buste que é per­pe­trado.

In­fe­liz­mente muitos dos pró­prios di­ri­gentes as­so­ci­a­tivos (e também dos po­lí­ticos) deixam-se em­barcar com fa­ci­li­dade  na ide­o­logia do «menos Es­tado», sem re­parar que, ao mesmo tempo que se des­com­pro­mete em re­lação às obri­ga­ções que tem quanto ao for­ne­ci­mento de meios, de facto acentua-se a sua tu­tela sobre o Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo. Assim, é fre­quente en­con­trar-se ho­mens e mu­lheres que de­sin­te­res­sada e ab­ne­ga­da­mente se têm de­di­cado ao tra­balho vo­lun­tário nos clubes re­pro­du­zirem o dis­curso ofi­cial que, de facto, é di­ri­gido contra eles pró­prios (trata-se, aliás, de um dos mais dra­má­ticos pa­ra­doxos de que a crise se re­veste).

Esta si­tu­ação faz parte do pro­cesso de mis­ti­fi­cação dos fe­nó­menos so­ciais, re­fe­ridos à com­pre­ensão plena dos me­ca­nismos que os de­ter­minam. Dentro da crise de que os pri­meiros res­pon­sá­veis são aqueles que têm de­tido as ala­vancas do poder, pe­rante as di­fi­cul­dades que ela faz viver a todas as es­tru­turas co­mu­ni­tá­rias é fácil lançar a con­fusão ide­o­ló­gica e mas­carar as ver­da­deiras ra­zões da crise e de quais são as suas ver­da­deiras causas (por isso a au­sência de es­tudos es­cla­re­ce­dores, só pos­sí­veis a partir da acção da ad­mi­nis­tração cen­tral, e que cla­ri­fi­ca­riam a si­tu­ação).

A luta pela so­bre­vi­vência do Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo Po­pular,  in­de­pen­dente e ac­tivo, na es­teira das fun­ções que his­to­ri­ca­mente de­sem­pe­nhou, é uma ta­refa fun­da­mental para o de­sen­vol­vi­mento da de­mo­cracia, para con­tra­riar os efeitos da dis­cri­mi­nação so­cial a que as ca­madas so­ciais mais ca­ren­ci­adas estão sub­me­tidas e para criar con­di­ções de acesso a uma cul­tura que não es­teja li­mi­tada a «eleitos» do poder do­mi­nante.

O re­co­nhe­ci­mento da vida as­so­ci­a­tiva como área de ex­pressão das ne­ces­si­dades das po­pu­la­ções, local de par­ti­ci­pação em que os in­di­ví­duos tomam para si a quota de res­pon­sa­bi­li­zação capaz de os ajudar a de­sem­pe­nhar ple­na­mente a sua ci­da­dania, torna-se ab­so­lu­ta­mente in­dis­pen­sável.

Na­tu­ral­mente que a vida as­so­ci­a­tiva diz res­peito a todos os meios so­ciais e a todas as ca­madas da po­pu­lação. No en­tanto, in­te­ressa com­pre­ender a im­por­tância do clube po­pular para os grupos so­ciais que so­frem mais in­ten­sa­mente as con­sequên­cias da sua dis­cri­mi­nação eco­nó­mica e cul­tural.

Aquilo que se passa nas cin­turas das grandes ci­dades, nas áreas em de­ser­ti­fi­cação, nos bairros po­pu­lares, impõe a todos os res­pon­sá­veis que lutam pela trans­for­mação da vida so­cial num sen­tido mais justo, a pro­cura de so­lu­ções e de res­postas ca­pazes de pro­mo­verem a vida as­so­ci­a­tiva. Elas têm de partir da cons­ta­tação pri­mor­dial de que à se­gre­gação so­cial pro­vo­cada pela  crise se soma uma outra, de tipo cul­tural, que agrava ainda mais a si­tu­ação dos mais des­fa­vo­re­cidos (afinal uma «fatia» mai­o­ri­tária da po­pu­lação).

Tudo isto se tem de pro­cessar su­bor­di­nado a uma visão re­a­lista dos li­mites da acção do Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo. Tal como ou­tras ins­ti­tui­ções, ele também pode re­pro­duzir os me­ca­nismos da se­gre­gação. Mas isto, desde que de­vi­da­mente to­mado em con­si­de­ração, não re­tira im­por­tância e valor ao clube po­pular como cé­lula base da vida co­mu­ni­tária e cul­tural.



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