O pecado mortal

Correia da Fonseca

A es­tória é sim­ples, mas não deixa de ser uma es­tória de selva. Era uma vez uma em­presa cha­mada Vivo que era uma im­por­tante em­presa bra­si­leira da área das co­mu­ni­ca­ções. Como toda a gente sabe ou pelo menos ouviu dizer, as co­mu­ni­ca­ções são hoje um im­por­tante sector de ac­ti­vi­dade em qual­quer parte do mundo, até se diz que es­tamos da Idade da Co­mu­ni­cação, e também se diz que as co­mu­ni­ca­ções cons­ti­tuem um sector es­tra­té­gico. Ora bem: acon­tece que dois im­por­tantes nacos do ca­pital da Vivo per­tencem (ainda per­tencem) à por­tu­guesa Por­tugal Te­lecom, também co­nhe­cida por PT, e à es­pa­nhola Te­le­fó­nica. Pa­rece que a pre­sença por­tu­guesa na Vivo tem vá­rias van­ta­gens, umas con­cretas ou­tras mais para o sim­bó­lico, sendo de ad­mitir que entre estas úl­timas pode contar-se o facto de con­tra­riar a even­tual con­vicção de que os por­tu­gueses só vão para o Brasil para se de­di­carem ao ramo de secos & mo­lhados. Adi­ante. O caso é que um dia destes a Te­le­fó­nica pa­rece ter sido aco­me­tida por um in­tenso ataque de gula, mo­léstia en­dé­mica entre as grandes em­presas, e de­cidiu propor à PT a compra da sua parte no ca­pital da Vivo. A PT re­sistiu: pelos vistos, sentia-se bem no Brasil. A Te­le­fó­nica disse que pa­gava bem. Anun­ciou de­pois que pa­gava mesmo muito bem. Fez saber mais tarde que pa­gava ainda me­lhor. Aí, clau­di­caram mesmo os ac­ci­o­nistas da PT que ini­ci­al­mente ha­viam pro­me­tido não vender: afinal, até o velho e ve­ne­rável João de Deus nos avisou de que «o di­nheiro é tão bo­nito, tem tanta força o la­drão!» O ne­gócio es­tava, assim, à bei­rinha de estar fe­chado quando o go­verno re­solveu dizer «não» para tanto usando uns di­reitos es­pe­ciais que lhe são con­fe­ridos por umas ac­ções co­nhe­cidas por «golden shares» e de que nin­guém es­taria a lem­brar-se. Ou, lem­brando-se, seria su­posto não ser­virem para nada ex­cepto talvez para usar na la­pela em dias de festa, um pouco à se­me­lhança dos cravos ver­me­lhos nas la­pelas de al­guns de­pu­tados num certo dia do ano.

Um trí­plice poder

Foi um es­cân­dalo. É que o veto go­ver­na­mental cons­titui um feio e grande pe­cado mortal co­me­tido contra um dos prin­ci­pais man­da­mentos da Santa Madre Eu­ropa, o que or­dena a in­tei­ra­mente livre cir­cu­lação dos ca­pi­tais para que os seus de­ten­tores possam abo­ca­nhar os pi­téus que lhes ape­teçam sem serem im­por­tu­nados, e viola a von­tade do Al­tís­simo, isto é, do Deus Mer­cado, que manda que os mais fortes possam de­vorar os mais pe­quenos em paz e sos­sego, di­gamos assim mas só neste caso, pois é sa­bido que de um modo geral o Mer­cado pouco preza o sos­sego e a Paz. Foi, pois, um es­cân­dalo, e um es­cân­dalo que logo se veio sentir nos ecrãs dos te­le­vi­sores que temos em casa, sendo esta con­sequência a que por ra­zões ób­vias so­bre­tudo im­porta para estas duas co­lunas de es­for­çada prosa. Aos es­tú­dios das di­versas es­ta­ções acor­reram ana­listas, téc­nicos de Eco­nomia e Fi­nanças, opi­nion ma­kers de sa­be­do­rias ge­rais, apa­rentes porta-vozes da Co­missão Eu­ro­peia, e todos ou quase todos re­pu­di­aram a ati­tude do go­verno, muitas vezes aliás no pros­se­gui­mento dos textos que se­riam es­tri­ta­mente jor­na­lís­ticos e já ha­viam sido de­bi­tados pelos apre­sen­ta­dores dos te­le­no­ti­ciá­rios. No seu con­junto, eram a Di­reita po­lí­tica, que como se sabe é ali­men­tada a bi­berão pelo grande e médio ca­pi­ta­lismo, com ex­cepção do dr. Portas que, não an­dando aqui por ver andar os ou­tros, logo terá pen­sado em ar­re­cadar pro­veitos po­lí­tico-elei­to­rais de uma ati­tude de sabor pa­trió­tico. Quanto ao PCP, apoiou o veto go­ver­na­mental por ra­zões de in­te­resse na­ci­onal e de­certo por muito bem saber que nunca os ban­quetes que o grande ca­pital a si pró­prio serve coin­cidem com o in­te­resse dos tra­ba­lha­dores. Porém, o que aqui mais im­porta é o facto de as es­ta­ções por­tu­guesas de Te­le­visão terem tão es­can­ca­ra­da­mente aberto as portas dos seus es­tú­dios ao alu­vião de vozes de Di­reita sem cui­darem de pre­servar su­fi­ci­en­te­mente o por vezes muito in­vo­cado prin­cípio do con­tra­di­tório. Chegou a ouvir-se in­si­nuar que o pa­tri­o­tismo e a de­fesa de in­te­resses na­ci­o­nais são coisas do pas­sado, ob­so­letas, por­ven­tura ri­dí­culas, sem que ta­manha bru­teza fosse pelo menos ime­di­a­ta­mente con­tes­tada. O que na ver­dade sig­ni­fi­cará ser a ver­gonha a estar fe­rida de ob­so­les­cência em sec­tores que detêm o trí­plice poder de nos in­formar, de nos formar e de nos de­formar.



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