Associativismo e a grande manobra neoliberal

A. Mello de Carvalho

De acordo com o que se ouve dizer e o que se lê, o clube des­por­tivo po­pular sofre de um mal per­ni­cioso: o ar­caísmo da sua gestão. Para re­solver a questão uma única so­lução pos­sível: trans­formar o clube numa em­presa.

O ser­viço pú­blico, a função de uti­li­dade so­cial, a sa­tis­fação das ne­ces­si­dades so­ciais, a luta contra a se­gre­gação e as de­si­gual­dades so­ciais, não passam de pre­o­cu­pa­ções ul­tra­pas­sadas que, aliás, nunca ti­veram au­tên­tica ex­pressão no nosso País. De acordo com esta pers­pec­tiva a crise do as­so­ci­a­ti­vismo ra­dica pre­ci­sa­mente na ma­nu­tenção destas pre­o­cu­pa­ções.

A re­a­li­dade é que se está pe­rante uma cam­panha, bem or­ga­ni­zada e ex­pres­sando-se de di­fe­rentes formas, que visa sub­meter os clubes po­pu­lares e toda a vida as­so­ci­a­tiva, aos im­pe­ra­tivos da po­lí­tica de raiz ne­o­li­beral. O ob­jec­tivo desta acção con­siste em li­quidar todas as for­ma­ções so­ciais que re­cusem aceitar ori­entar-se pela sua car­tilha. In­fe­liz­mente esta cam­panha en­contra um eco ines­pe­rado no pró­prio mundo as­so­ci­a­tivo, de facto mal pre­pa­rado em termos dou­tri­ná­rios, para se si­tuar com cla­ri­vi­dência pe­rante esta si­tu­ação.

O que está em causa é fazer pre­va­lecer a ló­gica da ren­ta­bi­li­dade fi­nan­ceira, pro­cu­rando que as ca­madas po­pu­lares nela se in­te­grem con­vic­ta­mente. O Mo­vi­mento As­so­ci­a­tivo, com ca­rac­te­rís­ticas que se opõem tra­di­ci­o­nal­mente a esta pers­pec­tiva, passa, por isso, a cons­ti­tuir um alvo pre­fe­ren­cial dos «ideó­logos» do ne­o­li­be­ra­lismo.

Com o pre­texto de que o clube já não res­ponde às ex­pec­ta­tivas como acon­tecia no pas­sado, os seus qua­dros são ve­lhos, a gestão ob­so­leta e a ren­ta­bi­li­dade fi­nan­ceira nula, esta con­cepção pro­cura in­citar os di­ri­gentes as­so­ci­a­tivos a apli­carem as téc­nicas em­pre­sa­riais. O que está em causa é uma me­lhor «pro­du­ti­vi­dade», e uma maior efi­cácia (na­tu­ral­mente, não de na­tu­reza so­cial) que só pode ser con­se­guida com a trans­for­mação numa em­presa. Evi­den­te­mente que esta con­cepção im­plica uma nova função a de­sem­pe­nhar pelo clube e um novo po­si­ci­o­na­mento do di­ri­gente.

Os clubes po­pu­lares têm ne­ces­si­dade de rever os seu mé­todos de tra­balho, os an­tigos di­ri­gentes pa­ra­li­sados pela ro­tina e a in­com­pe­tência, devem ser subs­ti­tuídos por jo­vens ma­na­gers, de ca­rácter pro­fis­si­onal e for­mados na es­cola da em­presa. A gestão do quo­ti­diano as­so­ci­a­tivo des­por­tivo deve deitar fora o lastro dos an­tigos con­ceitos (pre­con­ceitos?) do bem pú­blico, do ser­viço à co­mu­ni­dade e de res­posta às ne­ces­si­dades, para ser subs­ti­tuído por uma gestão fi­nan­ceira «eficaz».

Que tipo de gestão? A do mer­cado ne­o­li­beral, que trans­forma as ci­dades num au­tên­tico caos ori­gi­nado por uma es­pécie de su­ces­sivos im­pulsos opor­tu­nís­ticos, des­co­nexos, fa­lhos de co­e­rência e afinal, hi­po­te­cando no pre­sente e, cada vez mais para o fu­turo, aquilo que mais im­por­tante se pode con­si­derar na ci­dade hu­ma­ni­zada.

Em úl­tima ins­tância (será mesmo úl­tima?) o de­sen­vol­vi­mento ló­gico desta con­cepção le­vará o clube a ex­plorar o mer­cado de ca­pi­tais e a gestão dos seus di­ri­gentes, téc­nicos e outro pes­soal de­verá sub­meter-se aos mé­todos pri­vados de ob­tenção de lucro. Ao mesmo tempo que esta ofen­siva ide­o­ló­gica é lan­çada, as­siste-se ao re­cru­des­ci­mento da an­tiga po­sição dos di­ri­gentes de grandes clubes, trans­for­mados em enormes má­quinas de es­pec­tá­culo des­por­tivo, clamar pelo apoio do Es­tado. Os mé­todos «em­pre­sa­riais» destes di­ri­gentes, muitas vezes ca­pi­ta­listas de re­nome, ou por eles apoi­ados, levam fre­quen­te­mente, o seu clube para au­tên­ticos abismos fi­nan­ceiros donde se salvam fa­zendo apelo à massa as­so­ci­a­tiva e a be­nesses es­pe­ciais, quer fi­nan­ceiras, quer fis­cais, que todos nós temos de fi­nan­ciar através ou do Or­ça­mento do Es­tado, os de al­te­ra­ções in­con­gru­entes, mas muito có­modas, aos Planos Di­rec­tores Mu­ni­ci­pais.

Para eles o Es­tado deve apoiar o «es­pec­tá­culo po­pular» do fu­tebol pro­fis­si­onal através de do­ta­ções fi­nan­ceiras a fundo per­dido e o ali­gei­ra­mento da carga fiscal. Desta forma, os clubes do fu­tebol pro­fis­si­onal de alto nível po­derão criar o acon­te­ci­mento, mas também ofe­recer um es­pec­tá­culo de «qua­li­dade» à po­pu­lação como forma de evasão e como tema de dis­cussão para toda a se­mana.

Assim se fecha o cír­culo da ide­o­logia do­mi­nante em re­lação ao clube de raiz po­pular e ao des­porto. A função prin­cipal que este deve de­sem­pe­nhar é a di­versão so­cial, e o clube deve or­ga­nizar-se em função dela.



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