O «Homem dos sete ofícios» e a morte do serviço público

A. Mello de Carvalho

A tão fa­lada crise do di­ri­gismo passa, no fundo, pelo não re­co­nhe­ci­mento do «pro­duto» por ele «pro­du­zido». É também por isso que se afirma, cada vez mais fre­quen­te­mente, que para o seu tra­balho as­sumir a efi­cácia in­dis­pen­sável deve do­minar as novas téc­nicas de gestão e de mar­ke­ting.

A con­sequência de tudo isto é que o di­ri­gente as­so­ci­a­tivo se vê trans­for­mado numa «es­pécie» de téc­nico de se­gunda ordem, de sub-pro­fis­si­onal. Esta pers­pec­tiva tem sido vei­cu­lada pelo mer­cado dos média, pela spon­so­ri­zação e a pu­bli­ci­dade que, cada vez mais, es­ta­be­lecem uma pro­mis­cui­dade cujo sig­ni­fi­cado é muito pouco sadio.

Desta forma, um nú­mero sig­ni­fi­ca­tivo de di­ri­gentes trans­formou-se numa nova es­pécie de apren­dizes de fei­ti­ceiro (!) mas­ca­rados em ges­tores.

Em todas as cir­cuns­tân­cias dá-se uma perda acen­tuada do sig­ni­fi­cado hu­ma­ni­zador do pro­jecto e o pró­prio in­di­víduo sofre graves con­sequên­cias, per­dendo-se fa­cil­mente para o pró­prio as­so­ci­a­ti­vismo.

Por outro lado, mas num as­pecto não menos sig­ni­fi­ca­tivo, co­loca-se uma outra questão re­fe­rida à pró­pria ati­tude do di­ri­gente e a quem ele se di­rige. As­su­mindo uma po­sição am­bígua, em que o al­truísmo se junta à ob­tenção de lu­cros mais ou menos pal­pá­veis, cai-se num pro­cesso que des­mo­bi­liza muitos da­queles que po­de­riam cons­ti­tuir-se como ac­tores per­ma­nentes da função as­so­ci­a­tiva vo­lun­tária.

Ora, a função do di­ri­gente não tem nada a ver com tudo isto. A sua vo­cação es­sen­cial con­siste em es­tru­turar o ter­ceiro termo da tríade – trans­for­mação do in­di­víduo, trans­for­mação da so­ci­e­dade, pro­jecto. Ou seja: com­pete-lhe en­con­trar e dar sen­tido ao pro­jecto hu­ma­ni­zador, factor es­sen­cial para dar real sig­ni­fi­cado a todo o tra­balho de­sen­vol­vido por si pró­prio e pelos seus pares.

É, por­tanto, o pró­prio sig­ni­fi­cado desta acção que jus­ti­fica a função so­cial do di­ri­gente as­so­ci­a­tivo em termos de um ser­viço que só pode en­con­trar ver­da­deira razão de ser na sua função so­cial. Ou seja, em lugar de o so­bre­car­regar com ta­refas mais ou menos téc­nicas, mais ou menos bu­ro­crá­ticas, é in­dis­pen­sável li­bertá-lo para o de­sem­penho da­quela função.

Esta deve ser de­vi­da­mente re­co­nhe­cida pela so­ci­e­dade como um au­tên­tico ser­viço pú­blico. E, nesse mo­mento, o di­ri­gente as­so­ci­a­tivo deve passar a pos­suir um es­ta­tuto pró­prio, além de ver re­co­nhe­cido o tra­balho re­a­li­zado pelo clube de que é res­pon­sável, em termos pal­pá­veis.

A pre­do­mi­nância, cada vez mais acen­tuada, do mer­cado dos in­te­resses par­ti­cu­lares, en­co­ra­jada for­te­mente pelos po­deres do­mi­nantes, tem como ob­jec­tivo a «morte» do ser­viço pú­blico. Em termos des­por­tivos, sector do as­so­ci­a­ti­vismo em que esta re­a­li­dade é par­ti­cu­lar­mente viva, o re­co­nhe­ci­mento da função so­cial do di­ri­gismo be­né­volo e a im­por­tância fun­da­mental do pro­jecto so­cial a que ele dá corpo são es­sen­ciais não só para si pró­prio mas, fun­da­men­tal­mente, para a so­ci­e­dade.

Uma visão deste tipo es­capa per­ma­nen­te­mente ao ci­dadão «comum» mas, pior do que isso, ao pró­prio di­ri­gente. Este, im­preg­nado pela con­cepção cor­rente que exige que ele se trans­forme numa es­pécie de «homem dos sete ofí­cios» e, de­so­ri­en­tado, por um lado, pelas di­fi­cul­dades per­ma­nentes que se opõem ao de­sen­vol­vi­mento do pro­jecto e, por outro, pela falta de re­co­nhe­ci­mento do valor da acção que de­sen­volve, fa­cil­mente se «perde» no la­bi­rinto das con­cep­ções eco­no­mi­cistas que o en­volvem numa teia de en­ganos que o levam a des­va­lo­rizar a sua pró­pria acção. Por outro lado, a au­sência de uma au­tên­tica «cul­tura as­so­ci­a­tiva» as­sente na função crí­tica e na aná­lise pon­de­rada do sig­ni­fi­cado so­cial e cul­tural da acção do clube dentro da so­ci­e­dade levam-no, ine­vi­ta­vel­mente, a cair numa ati­tude per­ma­nen­te­mente quei­xosa em que o ver­da­deiro sen­tido rei­vin­di­ca­tivo se perde, pelo menos, em parte sig­ni­fi­ca­tiva. Por outro lado, a fi­xação per­ma­nente na ta­refa des­por­tiva quo­ti­diana im­pede a re­flexão e o es­forço co­lec­tivo de aná­lise e de pes­quisa das ver­da­deiras ra­zões que ex­plicam e tornam claras as di­fi­cul­dades que têm de vencer.

So­mente uma forte to­mada de cons­ci­ência crí­tica, si­mul­ta­ne­a­mente de ca­rácter so­cial e as­so­ci­a­tiva, po­derá im­pedir que o di­ri­gente se de­so­ri­ente e, com isso, «perca» o sen­tido que a sua acção deve pros­se­guir.

Esta será a única forma de evitar que se con­tinue a co­meter o erro de con­fundir o di­ri­gente as­so­ci­a­tivo vo­lun­tário com mão de obra gra­tuita in­tei­ra­mente con­di­ci­o­nada pelos in­te­resses que ro­deiam e con­di­ci­onam a vida de muitas as­so­ci­a­ções (ou clubes) in­te­grados no mer­cado do es­pec­tá­culo des­por­tivo.



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