O grito

Anabela Fino

Na cam­panha elei­toral que agora ter­mina, como de resto em todas as ou­tras, o que mais se ouviu foram as vozes – as mesmas de an­te­ri­ores cam­pa­nhas ou ou­tras que de tão idên­ticas na cas­sete mais pa­recem as mesmas – cla­mando a au­sência de de­bate sobre os reais pro­blemas na­ci­o­nais, apon­tando aos elei­tores a «ine­vi­ta­bi­li­dade» da es­colha afu­ni­lada entre os can­di­datos da si­tu­ação, pro­cla­mando de forma mais ou menos as­ser­tiva a inu­ti­li­dade destas elei­ções, e con­cluindo – hélas – que mais valia acabar com o es­cru­tínio se­creto, di­recto e uni­versal e deixar ao Par­la­mento a ta­refa de es­co­lher o pri­meiro ma­gis­trado da Nação, tal qual su­cedia no tempo do fas­cismo.

De tanto re­pe­tirem o dis­curso nem se dão conta, as vozes, das con­tra­di­ções em que ocorrem. De tanto in­sis­tirem em co­locar palas no elei­to­rado nem se aper­cebem, as vozes, da pró­pria es­trei­teza das doutas aná­lises.

De tão des­li­gadas do País real nem se dão conta, as vozes, que a vida flui de di­versas formas e há um tempo em que o rio sub­merge as mar­gens que o oprimem.

Ha­verá quem ache ir­re­le­vante, ou de sim­ples mau gosto, que Ca­vaco Silva can­di­dato – para ca­tivar votos – ma­ni­feste sim­patia pelos tra­ba­lha­dores da função pú­blica que foram rou­bados no seu sa­lário pelo Or­ça­mento do Es­tado pro­mul­gado por Ca­vaco Silva pre­si­dente.

Ha­verá também quem ache ab­so­lu­ta­mente na­tural que Ma­nuel Alegre não veja ne­nhuma in­com­pa­ti­bi­li­dade em ser apoiado pelo (seu) par­tido que há dé­cadas pro­move todas as po­lí­ticas anti-so­ciais que en­quanto can­di­dato diz com­bater.

Ha­verá igual­mente quem não es­tranhe o facto de os can­di­datos da al­ter­nância pre­garem a sua so­li­da­ri­e­dade com os po­bres e des­va­lidos e com os cada vez mais po­bres de­vido à po­lí­tica dos «sa­cri­fí­cios para todos», e não te­nham um co­men­tário se­quer face à obs­ce­ni­dade que re­pre­sentam os lu­cros dos quatro mai­ores bancos pri­vados, que em con­junto com a PT, EDP e a GALP as­cen­deram (nos pri­meiros três tri­mes­tres de 2010) a sete mil oi­to­centos e cin­quenta e dois mi­lhões de euros, ou seja qual­quer coisa como 21,5 mi­lhões por dia.

E ha­verá ainda quem re­giste como epi­só­dios de cam­panha, co­mo­ventes em­bora, os tes­te­mu­nhos po­pu­lares que che­garam aos ecrãs das te­le­vi­sões, via Fran­cisco Lopes, dando conta que há gente, muita gente, im­pe­dida de ir às con­sultas mé­dicas porque fe­charam os cen­tros de saúde ou porque não tem di­nheiro para pagar as ele­vadas taxas de trans­porte dos do­entes, ou que está de­sem­pre­gada e não sabe como vai pôr na mesa a co­mida para os fi­lhos, ou que vai ter de aban­donar os es­tudos porque o Go­verno lhe cortou a bolsa de es­tudo, ou que não sabe como vai pagar a renda da casa, a conta da elec­tri­ci­dade, do gás, dos trans­portes... porque o mês au­menta cada vez mais no fim de cada or­de­nado.

Só por má fé ou com­pleta surdez se pode dizer que nesta cam­panha não se falou dos pro­blemas do povo e do País e da al­ter­na­tiva pa­trió­tica e de es­querda para os re­solver. Em qual­quer dos casos, é ma­ni­festa a ne­ces­si­dade de gritar mais alto. No do­mingo, pois claro, vo­tando, mas também em todos os ou­tros dias que se se­guem porque o voto é im­por­tante mas a ba­talha a travar não se fica por aí.



Mais artigos de: Opinião

Cumprir o dever até ao fim

Não há nada como a consciência do dever cumprido para nos deixar bem connosco próprios. É assim em tudo – e, portanto, também em matéria eleitoral. É claro que se o dever cumprido conduzir, como é justo que conduza, a resultados positivos, melhor...

A turma de Cavaco

João Rendeiro – figura maior do BPP, envolvido, pelo que está tornado público, na gestão danosa no Banco a que presidia, agora acusado de um alegado desvio de cem milhões de euros para contas pessoais – confessou em 2006, em entrevista a uma revista, aspirar a poder vir a...

Estas eleições vão deixar marcas

Não será decerto no actual quadro de uma democracia profundamente cerceada que as eleições poderão alterar radicalmente a situação existente. Mas quaisquer que sejam as votações obtidas por cada candidato nas eleições de domingo próximo,...

20 anos

A primeira Guerra do Golfo foi há 20 anos. Nessa guerra, o imperialismo norte-americano mostrou ao mundo o seu novo arsenal de tecnologia da morte, com mísseis cruzeiro e Tomahawk, armas com urânio empobrecido que atravessam a blindagem de tanques, interceptores Patriot que, pretensamente, derrubavam...

Uma candidatura ligada ao país que trabalha e produz

O ba­ta­lhão de co­men­ta­dores, ana­listas, po­li­tó­logos e de­mais es­pe­ci­a­listas ao ser­viço do sis­tema tem-se des­do­brado em aná­lises sobre a cam­panha elei­toral, ca­rac­te­ri­zando-a como sendo mar­cada pelos epi­só­dios, pi­car­dias e ata­ques pes­soais, pas­sando ao lado dos reais pro­blemas do País.