O problema da «qualidade do carola»

A. Mello de Carvalho

O nú­mero de «ca­rolas» (vo­lun­tá­rios, be­né­volos) que in­te­gram os clubes, que dão vida e põem de pé o des­porto na­ci­onal é des­co­nhe­cido, de resto, como quase tudo em re­lação a esta área da vida so­cial. O cál­culo de que existem cerca de 12 mil clubes des­por­tivos, per­mite que se con­si­dere que, à sua frente, se en­con­tram, pelo menos, mais de 100 mil pes­soas, mai­ores, dos dois sexos (com enorme pre­do­mi­nância dos ho­mens) que ga­rantem o fun­ci­o­na­mento e a vida quo­ti­diana dos clubes, o en­qua­dra­mento das equipas, o fun­ci­o­na­mento de sec­ções des­por­tivas, etc.

O aban­dono, a de­sis­tência, ou a sim­ples li­mi­tação da acção destas pes­soas teria uma re­per­cussão in­cal­cu­lável na vida des­por­tiva na­ci­onal. Mas, para além das con­sequên­cias des­por­tivas, seria todo o te­cido so­cial que se al­te­raria pelo de­sa­pa­re­ci­mento de um dos lo­cais em que a vida co­mu­ni­tária con­vi­vial se pode re­a­lizar de forma mais in­tensa. De facto, para além do enorme valor eco­nó­mico que re­pre­senta o tra­balho dos «ca­rolas», seria toda a vida de­mo­crá­tica do País que seria pro­fun­da­mente pre­ju­di­cada.

Este grande con­tin­gente, re­pre­sen­tando um «ca­pital» ines­ti­mável de de­di­cação, ex­pe­ri­ência, saber e energia vo­lun­tária, cons­titui um dos grandes pi­lares, se não o mais im­por­tante, do de­sen­vol­vi­mento des­por­tivo. Estas pes­soas não estão isentas de con­tra­di­ções, in­con­sequên­cias e ou­tros fe­nó­menos. O facto é que são pes­soas como as ou­tras.

Como se sabe é este con­tin­gente que se afirma estar em crise. Não se co­nhecem bem quais os seus con­tornos, mas afirma-se que o «ca­rola» pa­rece não res­ponder, no pre­sente, às so­li­ci­ta­ções da mo­der­ni­zação da vida as­so­ci­a­tiva e do pró­prio des­porto. Um as­pecto vi­sível desta crise ve­ri­fica-se na di­fi­cul­dade em en­con­trar o nú­mero su­fi­ci­ente de pes­soas dis­postas a subs­ti­tuir aqueles que aban­donam por qual­quer razão, ou pôr a fun­ci­onar novos clubes. Um seu as­pecto qua­li­ta­tivo re­fere-se à cons­tan­te­mente afir­mada falta de com­pe­tência que, do ponto de vista téc­nico e ad­mi­nis­tra­tivo, ca­rac­te­ri­zaria a ge­ne­ra­li­dade da­queles que se mantém em exer­cício.

Estas duas cons­ta­ta­ções me­recem uma re­flexão cui­dada capaz de ajudar a com­pre­ender a si­tu­ação. Nos seus as­pectos ge­rais, a «crise» que elas re­velam es­ta­be­lece-se em con­fronto com o pas­sado, re­lem­brado com a nos­talgia ha­bi­tual dos «bons ve­lhos tempos». Antes do mais, é bom es­cla­recer que estes «bons ve­lhos tempos» nunca exis­tiram. Como muitos ou­tros fe­nó­menos da vida cul­tural, o as­so­ci­a­ti­vismo man­teve-se em «crise» per­ma­nente desde que surgiu em me­ados do sé­culo de­za­nove. As di­fi­cul­dades de fun­ci­o­na­mento dos clubes de bairro, de au­tên­tica raiz po­pular, foram, desde sempre, uma ca­rac­te­rís­tica da his­tória do as­so­ci­a­ti­vismo por­tu­guês.

Na­tu­ral­mente que se ve­ri­fi­caram al­te­ra­ções, nal­guns casos não tão pro­fundas como se apregoa mas, de qual­quer modo, a com­ple­xi­fi­cação do fe­nó­meno so­cial global ve­ri­fi­cada nos úl­timos 50 anos, as di­fi­cul­dades cri­adas à vida co­mu­ni­tária como ela foi vi­vida e a in­ca­pa­ci­dade, da parte da so­ci­e­dade, em for­necer res­postas mais ajus­tadas às ne­ces­si­dades do tra­balho, do tempo livre e da pró­pria vida ur­bana, são as­pectos in­des­men­tí­veis. Todos eles com re­flexos in­tensos na es­tru­tura as­so­ci­a­tiva.

Devem juntar-se a estes ele­mentos, aqueles que se re­ferem à pró­pria evo­lução do des­porto, par­ti­cu­lar­mente evi­dente nos úl­timos quinze anos. O en­ca­re­ci­mento da sua prá­tica, as exi­gên­cias acres­cidas dos pra­ti­cantes, a so­fis­ti­cação dos equi­pa­mentos e a sua ca­rência, a des­va­lo­ri­zação das con­tri­bui­ções dos pró­prios as­so­ci­ados mas, acima de tudo, a von­tade, não ex­pressa, em eli­minar os «corpos in­ter­mé­dios» da par­ti­ci­pação ac­tiva dos ci­da­dãos na vida so­cial e po­lí­tica, cons­ti­tuem ele­mentos im­por­tantes para a com­pre­ensão das di­fi­cul­dades.

Quando à «crise quan­ti­ta­tiva», é evi­dente a sua exis­tência, mas convém situá-la na sua ver­da­deira di­mensão. De facto, o nú­mero de clubes au­mentou con­ti­nu­a­mente, ainda que de forma ir­re­gular, desde o pós guerra até hoje. Este facto, que traduz o de­sejo e a ne­ces­si­dade sen­tidos pelas po­pu­la­ções em alar­garem o seu es­paço so­ci­a­li­zante, na­tu­ral­mente cria di­fi­cul­dades quan­ti­ta­tivas im­por­tantes. In­fe­liz­mente não se en­contra qual­quer es­tudo sig­ni­fi­ca­tivo sobre este as­sunto no nosso País.

A «crise qua­li­ta­tiva» com­pre­ende-se bem à luz destes ele­mentos: as novas ne­ces­si­dades criam novos pro­blemas, as di­fi­cul­dades exigem formas adap­tadas de op­ti­mi­zação dos re­cursos exis­tentes e que são sempre es­cassos, a «mu­dança» impõe uma nova visão para equa­ci­onar an­tigos pro­blemas. A ne­ces­si­dade dos di­ri­gentes pos­suírem, ou co­nhe­cerem, formas adap­tadas de so­lução é, por isso, um im­pe­ra­tivo.

A crise qua­li­ta­tiva é, cer­ta­mente, o mais grave pro­blema que o nosso as­so­ci­a­ti­vismo des­por­tivo en­frenta no pre­sente. Por um lado, porque, pe­rante as al­te­ra­ções da vida so­cial, os «ca­rolas» ficam des­con­cer­tados e, fre­quen­te­mente, de­so­ri­en­tados. Assim, jun­tando-se à au­sência de pers­pec­tivas de acção adap­tada, surge a des­mo­ti­vação e a in­ca­pa­ci­dade em se aper­ce­berem das suas reais ca­pa­ci­dades.



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