Com papas e bolos…

Agostinho Lopes

Re­a­lizou-se no fim-de-se­mana, em nome da pro­dução na­ci­onal, uma farsa de grande di­mensão, mas de enorme valia pu­bli­ci­tária. A SONAE de Bel­miro de Aze­vedo, com a pres­ti­mosa co­la­bo­ração da Câ­mara Mu­ni­cipal de Lisboa, fe­chou o trân­sito na Ave­nida da Li­ber­dade, entre o Marquês de Pombal e os Res­tau­ra­dores, montou o «circo» da agri­cul­tura na­ci­onal e deu mú­sica.

Com papas e bolos…
Ou, de como al­guns lobos des­ceram a Ave­nida da Li­ber­dade dis­far­çados de cor­deiros
Ou, ainda, o mega-pi­que­nique que «de­fende a pro­dução na­ci­onal e ajuda os mais po­bres...»

Na con­ti­nui­dade do apelo do Pre­si­dente da Re­pú­blica, Ca­vaco Silva, no Dia de Por­tugal, a «terra» e o «in­te­rior» vi­eram para dentro da ci­dade. Isto é, al­guns dos res­pon­sá­veis mai­ores, pelo de­sastre da agri­cul­tura por­tu­guesa e pela de­ser­ti­fi­cação do in­te­rior do País, surgem como gente pre­o­cu­pada com a pro­dução na­ci­onal e o mundo rural! Além de farsa, hi­po­crisia!

A farsa é par­ti­cu­lar­mente des­pu­do­rada pela brutal con­tra­dição com a prá­tica «normal» da grande dis­tri­buição na re­lação com os seus for­ne­ce­dores e a pro­dução na­ci­onal. Ou, face às con­sequên­cias da sua ex­pansão ex­po­nen­cial e anár­quica na úl­tima dé­cada, para o co­mércio local e a de­ses­tru­tu­ração das trocas co­mer­ciais em muitas re­giões. A ins­ta­lação das suas uni­dades de re­talho sig­ni­ficou, em geral, um abas­te­ci­mento gros­sista a partir das suas cen­trais de com­pras, ex­te­rior às re­giões (no­me­a­da­mente do in­te­rior) e, muito es­pe­ci­al­mente, de pro­dução im­por­tada, em pre­juízo da pro­dução na­ci­onal e re­gi­onal!

É ex­tra­or­di­nário, mas não ca­sual, que a farsa se de­sen­volva após dois anos em que se tor­naram mais vivas e as­su­midas as de­nún­cias dos sec­tores agrí­cola e da agro-in­dús­tria contra as prá­ticas pre­da­tó­rias da Grande Dis­tri­buição. De­pois de su­ces­sivas de­nún­cias e re­cla­ma­ções do PCP, que aca­baram por levar à ela­bo­ração de um re­la­tório da Au­to­ri­dade da Con­cor­rência (Se­tembro de 2010). Grosso re­la­tório que, apesar de inócuo e par­cial, não deixa de re­fe­ren­ciar o poder es­ma­gador e de­se­qui­li­brado desses Grupos, e enu­merar os es­quemas e ar­ti­fí­cios uti­li­zados para re­duzir, e até eli­minar, a es­treita margem co­mer­cial dos seus for­ne­ce­dores. Ou mesmo evi­den­ciar o papel das cha­madas marcas brancas, as marcas pró­prias da Grande Dis­tri­buição, co­ber­tura dos cres­centes vo­lumes de pro­dução im­por­tada, de que o con­junto dos prin­ci­pais 9 grupos, são dis­tri­bui­dores pri­vi­le­gi­ados. Marcas que es­magam nas pra­te­leiras dos hiper e su­per­mer­cados, pelos preços apre­sen­tados, as pro­du­ções na­ci­o­nais de marca, quando não são o mesmo pro­duto ven­dido sobre as duas de­sig­na­ções, que o fa­bri­cante, sob a pressão do dis­tri­buidor, «sui­ci­dando-se», for­nece sobre os dois ró­tulos, o seu e o da marca branca! Grupos que têm uma quota de 85%/​90% do valor total de vendas no «re­talho ali­mentar», sendo que os dois pri­meiros (SONAE e Je­ró­nimo Mar­tins) re­pre­sentam uma quota con­junta de cerca de 50%. E são dos mai­ores im­por­ta­dores na­ci­o­nais!

E não deixa de ser elu­ci­da­tivo dos ver­da­deiros ob­jec­tivos da farsa pro­mo­ci­onal, que o evento das vacas e porcos, ove­lhas e burros à porta da car­reira, da quinta ur­bana da SONAE, acon­teça de­pois do pri­meiro Tri­mestre de 2011 onde, se­gundo dados do INE, as im­por­ta­ções de lac­ti­cí­nios so­maram 97 mi­lhões de euros – 30 mi­lhões em leite (cor­res­pon­dente a 41 mi­lhões de li­tros), 34 mi­lhões em queijos e 33 mi­lhões em  io­gurtes! Isto num País que é auto-su­fi­ci­ente em pro­dutos lác­teos, e que se en­contra a braços com uma dí­vida ex­terna mons­truosa – re­sul­tado, em grande parte, de um per­sis­tente e vo­lu­moso dé­fice agro-ali­mentar – que todos dizem querer eli­minar! Isto quando as ex­plo­ra­ções lei­teiras do País lutam pela sua so­bre­vi­vência, a braços com preços rui­nosos do leite, que não com­pensam os custos de pro­dução, fruto das po­lí­ticas da grande dis­tri­buição e do ex-Go­verno PS, e quando a pro­dução na­ci­onal baixou, na úl­tima cam­panha (entre 1 de Abril de 2010 e Março de 2011), 2%, ou seja, menos 36 mi­lhões de li­tros! Es­cu­sado será dizer, que grande parte da­quela im­por­tação de lac­ti­cí­nios foi ven­dida sob a forma de marcas brancas da grande dis­tri­buição! Como dizia, com in­teira razão, uma Or­ga­ni­zação Agrí­cola (FE­NALAC) que de­nun­ciou os reais ob­jec­tivos do evento: «A de­fesa da pro­dução na­ci­onal não pode ser um slogan pu­bli­ci­tário»!

Dois factos exem­plares, con­cretos e re­centes, tornam mais vi­sível a si­tu­ação vi­vida no sector dos lac­ti­cí­nios e a re­lação entre fa­bri­cantes, em geral pe­quenas e mé­dias em­presas, e a grande dis­tri­buição.

Num destes dias de início de Junho, fomos sur­pre­en­didos pela au­dácia da Lac­ti­cí­nios das Ma­ri­nhas (Es­po­sende), que pu­blicou um anúncio na im­prensa diária para in­formar que os seus pro­dutos dei­xa­riam de estar dis­po­ní­veis nas lojas Pingo Doce. As ra­zões foram dis­cordar das con­di­ções que a Je­ró­nimo Mar­tins pre­tendia impor. Se­gundo afir­ma­ções da sua ge­rente, a pro­pó­sito, à co­mu­ni­cação so­cial, «Se ti­vermos de morrer, mor­remos hoje. Não vamos so­bre­viver aos so­luços»! Resta dizer que a Lac­ti­cí­nios das Ma­ri­nhas é uma pe­quena em­presa com cerca de vinte tra­ba­lha­dores, que fa­brica queijos e uma das 13 me­lhores man­teigas do mundo, se­gundo a re­vista Wall­paper!

No dia 24 de Maio pas­sado, por carta elec­tró­nica, a SONAE «con­vi­dava» os seus for­ne­ce­dores de queijo a «com­par­ti­cipar» em «mais uma ac­ti­vi­dade pro­mo­ci­onal no valor de 25% sobre o sell out das vendas dos vossos ar­tigos no pe­ríodo de 23 de Maio a 5 de Junho»! Isto é, uni­la­te­ral­mente, sem au­to­ri­zação, com efeitos re­tro­ac­tivos ao dia an­te­rior – com a cam­panha pro­mo­ci­onal em curso! – a SONAE impõe a al­te­ração das con­di­ções de for­ne­ci­mento! Apesar da de­núncia pú­blica «deste as­salto» aos fa­bri­cantes pelo Se­cre­tário-Geral do PCP, não se co­nhece ini­ci­a­tiva da Au­to­ri­dade da Con­cor­rência contra estes abusos de po­sição do­mi­nante e de de­pen­dência eco­nó­mica…

Não será de es­tra­nhar, assim, que os re­sul­tados do 1.º Tri­mestre de 2011 da SONAE (áreas da dis­tri­buição, dos cen­tros co­mer­ciais e das te­le­co­mu­ni­ca­ções), apre­sen­tados a 24 de Maio, mos­trem, apesar de um vo­lume de ne­gó­cios «em linha com o ano an­te­rior», o «Lucro a du­plicar, en­di­vi­da­mento a en­co­lher». «O lucro lí­quido atri­buível aos ac­ci­o­nistas mais que du­plicou, para 12 mi­lhões de euros» (um au­mento de 106%)! Talvez tenha também aju­dado à co­lecta que a fac­tura do fim da in­sígnia Mo­delo, ab­sor­vida pela in­sígnia Con­ti­nente, ti­vesse sido pas­sada aos for­ne­ce­dores…

E po­demos con­cluir, ao modo de fá­bula: oh avo­zinha, porque gastas tanto di­nheiro em Lisboa, a fazer uma «quinta ur­bana» tão bo­nita, com tantos bi­chi­nhos, tanta sa­lada, tanta mú­sica? É para te comer / ex­plorar/ en­ganar (podem ser vá­rios os verbos!) me­lhor, minha que­rida «pro­dução na­ci­onal»! Moral da es­tória: os pre­da­dores gostam de se dis­farçar de sal­va­dores!

PS: es­tra­nha­mente o Go­verno Civil de Lisboa im­pediu, no sá­bado, 18 de Junho, que a APLC, As­so­ci­ação Na­ci­onal de Pro­du­tores de Leite e Carne, re­a­li­zasse uma ini­ci­a­tiva pro­gra­mada, e co­mu­ni­cada ofi­ci­al­mente,  junto do Marquês de Pombal, com oferta gra­tuita de leite aos ci­da­dãos, em de­núncia e pro­testo pela venda de leite im­por­tado pela Grande Dis­tri­buição!



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