A cobardia enquanto forma de honestidade

Filipe Diniz

Num da­queles de­sa­bafos ba­cocos que pro­fere quando está mais à von­tade, Ca­vaco Silva con­fessou que não co­piava na es­cola «por ter medo de ser apa­nhado». É a sua versão do velho di­tado se­gundo o qual «ver­gonha não é roubar. Ver­gonha é roubar e não poder fugir».

Como sempre que este gé­nero de pes­soas fala com o co­ração mais perto da boca, o que dizem acaba por ad­quirir um sig­ni­fi­cado mais amplo do que a sim­ples afir­mação que estão a fazer. Essa ati­tude contém todo um pro­grama de acção po­lí­tica.

O PSD, o CDS e o PS – como su­cede com quais­quer forças ao ser­viço da classe do­mi­nante no quadro da de­mo­cracia bur­guesa – têm um único prin­cípio a ori­entar a acção po­lí­tica: o poder le­gi­tima tudo, todos os meios são le­gí­timos para con­servar o poder.

A re­cente cam­panha elei­toral cons­titui um au­tên­tico com­pêndio na ma­téria. Todos eles subs­cre­veram o «me­mo­rando» da troika es­tran­geira. Todos eles men­tiram, omi­tiram, ocul­taram o seu con­teúdo e, em al­guns casos, fi­zeram pro­messas de sen­tido in­verso ao que sa­biam estar im­posto no «me­mo­rando». Juntos ob­ti­veram uma lar­guís­sima mai­oria dos votos ex­pressos. Juntos, em coro com Ca­vaco, afirmam que esses votos le­gi­timam o «me­mo­rando» cujo con­teúdo cui­da­do­sa­mente ocul­taram.

Face ao roubo anun­ciado de 50% do 13.º mês, um dos can­di­datos à di­recção do PS veio acusar o PSD de «vi­olar com­pro­missos elei­to­rais». Como se, de So­ares a Só­crates, não ti­vesse sido sempre também essa a prá­tica do seu par­tido.

Para estes po­lí­ticos, mentir ou mesmo ser um com­pleto tra­fulha não é pro­blema. E, a uma certa es­cala, tudo o que não seja ca­dastro é cur­rí­culo. Veja-se o que consta sobre a fi­gura que, se­gundo pa­rece, vai as­sumir a pre­si­dência do BCE. Trata-se de al­guém que foi alto fun­ci­o­nário da firma Goldman Sachs, uma das que ga­nhou mi­lhões à conta da cha­mada crise do «sub­prime». De al­guém de quem se diz que, nessa firma, ajudou ao en­co­bri­mento e à ma­qui­lhagem da ver­da­deira di­mensão do en­di­vi­da­mento ex­terno da Grécia. De al­guém de quem se diz que fez uso ile­gí­timo da in­for­mação pri­vi­le­giada a que tinha acesso.

Tem todas as con­di­ções para pre­sidir ao BCE. Pode ter feito isso tudo. Mas ver­gonha era se ti­vesse sido apa­nhado.



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