A infecção
Como habitualmente, ia eu calcorreando as ruas da (minha/nossa) amargura, isto é, ia fazendo zapping por esses muitos canais afora, quando de súbito deparei com uma entrevista que me acendeu as expectativas e me restituiu o ânimo. Eram um entrevistador e uma entrevistada, ambas pessoas por quem tenho apreço ainda que por razões diversas, e da conversa que ali estava a acontecer eram esperáveis inteligência e lucidez, méritos que como se sabe não abundam excessivamente nos programas que habitam os nossos televisores. Ali fiquei, pois, e de muito bom grado, na esperança de uns minutos de reconforto ou, como se diz na fórmula que o jargão automobilista forneceu até aos meros peões, de recarregar as baterias no meu caso exaustas. Ao longo de muitos e vários minutos fui bem sucedido: as perguntas eram interessantes e adequadas, as respostas eram corajosas e clarividentes, nem coisa diferente aliás eu esperava. Falavam sobretudo de um grande e excelente homem que bem merecia tudo quanto de bom diziam dele, e era gostoso ouvi-los. De longe em longe, mas muito de longe em longe, uma coisa ou outra me parecia poder sair melhor, ou talvez antes mais a meu gosto, mas há muito tempo aprendi que nada está obrigado a acontecer com a impecável perfeição com que sonhamos ou, talvez mais exactamente, na forma e no tom com que sucederiam se fôssemos nós a ditar os moldes da sua construção. E, assim, o raro bem-estar de olhar e ouvir o que televisor me fornece sem que o estômago proteste ia gotejando dentro de mim numa abençoada paz que não tinha nada a ver com o que horas antes vira acontecer em Madrid, bem antes pelo contrário.
Uma e outra tristeza
Eis, porém, que de súbito tudo se estragou. A propósito ou despropósito nem sei já de que questão, entrevistador e entrevistado trocaram frases que me revelaram a infelicidade: uma e outro, entrevistador e entrevistada, estavam afinal infectados pelo vírus do costume e num grau não só elevado mas também inesperado, sobretudo no que dizia respeito à entrevistada, mulher combativa e veemente, de muitas sabedorias adquiridas por colheita própria ou recebidas por dádiva. Era, contudo, verdade: estavam infectados e não pouco. Imaginava facilmente como a infecção se apoderara do entrevistador, homem há muitos anos imerso numa espécie de pântano infeccioso de onde diariamente se desprendem miasmas que se infiltram pelos ouvidos ou pelos olhos poisados na letra impressa e acabam por se fixarem no cérebro. Quanto à entrevistada, porém, a surpresa foi bem maior e por isso bem mais penosa. Sabia-a, é claro, senhora de uma personalidade forte, nada de maria-vai-com-as-outras, e por isso não a supunha seguidora passiva e acrítica fosse do que fosse. Mas, exactamente por isso, também não esperava ouvi-la a repetir sínteses não apenas injustas, o que já seria mau, mas também aparentemente vazias de reflexão e de estudo, de informações colhidas de um modo minimamente plural, de atenção aos contextos e às circunstâncias, ceguinhas enfim para os vários aspectos de uma realidade difícil e inevitavelmente infiltrada por contradições mas realidade acessível a uma compreensão empenhada em entendê-la. Ninguém se espantará se confessar que, mais que desapontado, fiquei triste. Mas o mais importante não será essa tristeza perante aqueles dois: essa será uma tristeza que terei de arrumar na prateleira onde outras tristezas já estão guardadas, é também para isso que vamos vivendo. O mais importante será uma outra tristeza, mais ampla, mais persistente, que me recuso a arquivar, que tem directamente a ver com os que, conhecendo as dimensões da calúnia e os seus efeitos, e também a enorme importância das verdades sempre ocultas e/ou rasuradas, parecem obstinar-se na desistência da reposição dos factos no quadro das circunstâncias que os motivaram e os explicam. Aparentemente, eles não sabem nem sonham que as consequências dessa passividade quase total, género «mulher séria não tem ouvidos», são gravíssimas para o desenrolar do combate ideológico que continua a percorrer o mundo, e portanto o País. Porque os ouvidos e os olhos por onde se infiltra o vírus que gera a infecção estão aí, desprotegidos de uma contradição adequada. E os infectados continuam a multiplicar-se. Como é o caso daquelas duas estimáveis criaturas cuja óbvia infecção transformou em tristeza o serão que se me prometera reconfortante.