Natal dos ricos
Dificilmente esquecerei aquele dia em que, devido aos bons ofícios da televisão, soube da enorme dificuldade, pela própria confessada, que a drª. Manuela Ferreira Leite tem em distinguir os ricos dos pobres. Lembro-me de que durante muito tempo andei deprimido, a imaginar a confusão que andaria por aquela pobre cabeça, aliás excelente e porque excelente com grande vocação ministerial na área das finanças e não só, como é sabido. A mim, felizmente, pouparam os céus tamanha desgraça, e por isso vou distinguindo entre ricos e pobres decerto graças aos sinais que decerto me são enviados do alto acompanhados pelo discernimento que me permite distinguir entre uns e outros. E por esta altura do ano, muito especialmente neste ano de 2011 que se acaba agora, essa capacidade tem ainda maiores possibilidades de se exercer. É que a chamada quadra do Natal é particularmente propícia não só a que a televisão se lembre dos pobres mas também a que os próprios pobres surjam pessoalmente nos ecrãs dos televisores, o que dificilmente ocorre durante o resto ano. Bem se pode dizer, pelo menos quando se fala de TV, que o Natal é o tempo da hiperpublicidade dirigida ao consumismo infantil e das imagens de pobrezinhos a aquecerem-se com uma sopa que generosamente lhes é servida por excelentes senhoras ou, se não propriamente por elas, pelo menos a seu mandado e sob seu apoio financeiro. São imagens que de um modo ou de outro nos tocam o coração, naturalmente. Tanto ou mais quanto as mensagens natalícias do senhor Presidente da República, desta vez coadjuvado pela sua esposa, assim se provando como é pesado o exercício das funções que exerce e como lhe é conveniente que alguém o ajude a suportar-lhes o peso.
Se
Entretanto, e decerto porque a providência suprema nunca está totalmente adormecida, nem tudo são penúrias e carências neste Natal português de 2011. Não apenas pelo que a televisão nos vem contando mas também pelo que à margem dela se vai conhecendo, vamos tendo o reconforto de saber não apenas que os ricos continuam a existir em Portugal mas também que, segundo fontes internacionais, estão cada vez mais distantes e acima dos pobres, o que certamente lhes é óptimo. É certo que o País globalmente considerado não ganha nada com isso: esses «ricos cada vez mais ricos» não se dão ao incómodo de investir sequer parte das suas capacidades financeiras em actividades produtivas que possam atenuar o défice das nossas contas externas, preferindo presumivelmente a transferência para off-shores que são colocação mais compensadora, mas pelo menos permitem que Portugal se possa orgulhar da sua existência, o que já é bonito. É de crer, além disto, que pelo menos uma pequena parte deles dê algum apoio a iniciativas caritativas que um pouco por todo o lado vão acontecendo, o que não só pode calar a boca aos que se obstinam em falar de classes e da sua permanente luta como garantirá a esses ricos, em reconhecimento do seu excelente coração, um lugar na primeira fila do Além quando lhes chegar a hora final. Entretanto e enquanto esse inevitável desenlace não chega, é óbvio que os ricos, os tais que a doutora não consegue distinguir, vão recebendo nesta vida substanciais adiantamentos por conta e, precisamente, este Natal é um momento óptimo para que isso se torne visível. Todos nós, gente comum, graças ou não à TV podemos saber dos milhares de cidadãos em quem o desemprego frutificou em fome, das crianças a quem mesmo durante as férias de Natal as cantinas escolares fornecem a comida que elas não encontram em casas dos pais, do total desamparo que acaba por se exprimir no aumento da delinquência. Mas, porque a mesma TV nos disse do aumento do tal fosso entre ricos e pobres, sabemos também que forçosamente haverá excelentes e muito felizes Natais entre os mais ricos, e bem se poderá dizer que é o que nos vale, pois do horizonte permitido pela intensa actividade do Governo não é visível que nos possa valer mais nada. De tudo quanto se sabe pela TV e não só, este Natal de 2011 vai ser o Natal dos ricos e o inferno dos pobres. Com um só factor para um eventual e muito relativo sentimento de conformação: o Governo já anunciou, ainda que indirectamente e por meias palavras que aos bons entendedores hão-de bastar, que o Natal de 2012 será ainda pior. Para os pobres. Entenda-se: se estes, compreensivos, deixarem.