Formigas e cigarras

Nuno Gomes dos Santos

A es­tória é co­nhe­cida e tem a sua razão de ser. A dita for­miga tra­ba­lhava imenso e a ci­garra não fazia puto, mas di­vertia-se à brava, can­tava que nem uma de­sal­mada, es­tava-se ma­rim­bando para os es­forços fí­sicos da pe­quena obreira e, vai daí, La Fon­taine achou por bem exaltar a tra­ba­lha­deira e me­nos­prezar a can­ti­gueira, de­ci­dindo li­mi­nar­mente a pre­do­mi­nância do tra­balho sobre o folgar. Tudo es­taria bem, não fora ficar assim de­ci­dido pelo fa­bu­lista que há que tra­ba­lhar sem gozo.

O bu­sílis da questão re­side numa pa­lavra sim­ples: fe­li­ci­dade. Dirão, se le­varem à letra La Fon­taine, que a fe­li­ci­dade, entre aspas por ina­ces­sível, re­side na cons­ci­ência tran­quila (e no corpo gasto e não atreito a com­pen­sa­ções) de quem se es­miúfra a tra­bu­quir sem ter mais ho­ri­zontes do que o sus­tento dos in­vernos ga­ran­tido pelo tra­balho das pri­ma­veras. E por aqui se fica a dis­ser­tação da tese, há que tra­ba­lhar para so­bre­viver, não há fol­guedos para nin­guém.

Faltou ao homem das fá­bulas uma ter­ceira per­so­nagem, que seria, se dela se ti­vesse lem­brado, uma for­miga de asas, bicho com­pro­va­da­mente exis­tente e que, la­bu­tando, tem tempo para voar, o que, na aná­lise com­por­ta­mental dos in­sectos, quer dizer, ci­gar­ra­mente fa­lando, cantar.

Vem isto a pro­pó­sito da frase abun­dan­te­mente pro­pa­gada de um se­nhor mi­nistro, co-autor de um pro­grama de com­por­ta­mentos de vida im­postos – na ver­da­deira acepção da pa­lavra – que obriga for­migas com so­nhos de, pelos menos, serem for­migas-ci­garras de vez em quando, a serem ex­clu­si­va­mente for­migas, da­quelas de en­cher ce­leiros que lhes ga­rantem um mí­nimo de sub­sis­tência a elas e um su­pe­ravit aos for­mi­gões que as con­trolam.

Que La Fon­taine tenha pre­ten­dido fazer um apelo ao tra­balho, por con­tra­po­sição a quem não tra­balha e só folga, sendo que há-de sempre haver al­guém que pague os fol­guedos de quem apenas vive de la­zeres, dá-se aqui de ba­rato, pesem em­bora al­gumas dú­vidas que o correr dos tempos veio a con­firmar. Mas que um mi­nistro por­tu­guês, em 2012, tempo de crise e da ultra-aus­te­ri­dade que es­maga quem, por tra­ba­lhar, é for­miga, sem di­reito a so­nhos de al­mejar ser, por mo­mentos que seja, ci­garra, é, no mí­nimo, in­sul­tuoso.

Cantou Zeca Afonso, para seu bem ci­garra-for­mi­gueira, «a for­miga no car­reiro vai em sen­tido con­trário». Porém, os ou­vidos do se­nhor mi­nistro e seus pares nunca hão-de en­tender que só é seu o canto do cisne. E que, nosso, há-de ser sempre, por mais que nos im­po­nham de­cretos de ser­vidão con­trária às me­lo­dias que a vida tem para nos dar, o canto da for­miga quando chega a al­tura de rei­vin­dicar ser a ci­garra a quem tem di­reito.



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