António em desvario

Correia da Fonseca

A cobertura da grande manifestação convocada pela CGTP foi, sem dúvida e como aliás todos sabemos, o mais emocionante facto televisivo da passada semana e terá sido porventura o mais falado. Mas teve uma séria concorrência no plano da notoriedade e dos comentários consequentes, tratando-se embora de um caso de natureza de todo diferente: a figura não apenas tristíssima mas também inquietante que o dr. António Borges fez, no Algarve, perante uma assembleia de empresários e também perante as câmaras e os microfones da televisão. Como já quase toda a gente sabe ou teve oportunidade de saber, o dr. Borges, depois de ter declarado como «muito inteligente» a proposta de reforma da TSU, isto é, aquela ideia sinistra de pilhar substanciais dinheiros aos trabalhadores para os entregar ao patronato (o que inevitavelmente leva a suspeitar de que ideia foi dele ou por ele inspirada), levou o desatino ao ponto de chamar «ignorantes» aos empresários que dela discordaram. E note-se que, contado assim, apenas por palavras escritas a preto sobre o branco, o episódio fica debilmente relatado: a sua intensidade só terá sido inteiramente apercebida por quem, olhando o ecrã do televisor, viu a inesperada máscara de raiva do dr. Borges ao vomitar o malcriado disparate reforçado por uma consideração atoleimada sobre as suas aulas de Economia. Perante aquele breve mas intenso espectáculo, muitos terão sido os telespectadores a pensarem que o homem está doente do espírito, do corpo ou de ambos, pois não é normal um desaforo daqueles mesmo em quem não tenha recebido em criança lições sumárias de boas maneiras. Mas o pior e mais assustador de tudo é sabermos que aquela criatura é uma espécie de «alta autoridade» para o processo de privatizações em curso, isto é, da destruição do que resta do património público. Perante a evidência audiovisual de que o homem não está bem, de que a sua episódica promoção à condição de superstar televisiva resulta de um público desvario, impõe-se naturalmente a adopção de medidas.

O caso dos números viciados

Poder-se-á objectar que foi um momento de exaltação, de enervamento, que em situação de serenidade o dr. António Borges seria mais calmo e bem-educado. É uma alegação possível e sem dúvida generosa, mas inconsistente com a realidade porque Borges produziu pelo menos mais um disparate, esse não apenas maior mas também mais grave do que uma episódica falta de mínimas boas maneiras. Aconteceu também no Algarve e consistiu na afirmação de que os custos suportados pelo Estado com as remunerações dos trabalhadores da Função Pública atingiriam a elevadíssima percentagem de 80% das despesas totais. É mentira. Já o dr. Eugénio Rosa, economista competente, atento e honrado, veio denunciar e desmentir o embuste, mas infelizmente sem que para isso tenha tido acesso ao meio comunicacional de superior eficácia que é a televisão. Num estudo solidamente apoiado em números oficiais, acessível pelo menos por via informática, Eugénio Rosa demonstra que os efectivos custos com as remunerações em causa se situam entre perto de 20% e bem menos de 30% dos custos remuneratórios totais. Fica por apurar, é claro, o que está na origem da enorme e grave inverdade impingida por António Borges: se o puro e simples desejo de mentir ao abrigo da imaginada protecção decorrente do seu suposto prestígio internacional, se o cruzamento entre incompetência e leviandade, se doença. Em qualquer destes casos, é imperioso e urgente que seja feita e adequadamente divulgada a correcção da mentira. De preferência por ele próprio, que assim se redimiria um pouco pelo menos deste outro desvario; por qualquer outra fonte, se credível, no caso de o doutor ainda não ter aprendido o mérito contido na correcção de um erro ou na retirada de uma impostura. De qualquer modo, é claro que António Borges fez prova pública de ausência de condições para exercer funções de responsabilidade: malcriado e viciador de importantíssimos dados de interesse público, resta-lhe desaparecer. E, um dia, melhorar. Se puder.



Mais artigos de: Argumentos

Uma imensa e legítima inquietação

Uma imensa e legítima inquietação percorre os militares e a Instituição. Desde logo porque os militares são pessoas com vidas, com famílias, e sentem como as outras as dificuldades que lhes entram porta dentro com o desemprego, o corte nas pensões e reformas, os...

Formigas e cigarras

A estória é conhecida e tem a sua razão de ser. A dita formiga trabalhava imenso e a cigarra não fazia puto, mas divertia-se à brava, cantava que nem uma desalmada, estava-se marimbando para os esforços físicos da pequena obreira e, vai daí, La Fontaine achou por...

<i>Um atalho eclesiástico para o poder mundial</i>

«É hora de buscar uma saída alternativa ao sistema capitalista – perverso a ponto de destruir triliões de seres vivos para salvar o mercado financeiro e virar as costas aos biliões de homens e mulheres que diariamente vacilam entre a pobreza e a miséria...» (Frei...