O Óscar, para quem sempre existiu o tu

José António Gomes

«Re­fere Má­ximo Gorki, não sem es­panto, que em Lé­nine, no meio de tanta pre­o­cu­pação, havia ainda lugar para a bon­dade – per­mitam-me que diga o mesmo de Óscar Lopes. E também sem es­panto.»

A seu modo mú­sico e poeta, se­nhor de um pen­sa­mento-feito-prosa, es­crita ou oral, que era au­tên­tica po­esia, o Óscar pen­sava e es­crevia coisas ful­gu­rantes como esta: «Nós fa­lamos quase sempre como quem usa frases, pa­la­vras. Às vezes, e de re­pente, sen­timos que, pelo con­trário, estão as frases, as pa­la­vras, a uti­li­zarem-nos, como se fôs­semos nós, e não elas, a servir de veí­culos para um certo sen­tido. As pa­la­vras, quando usadas, servem-nos de mãos, mãos de mil dedos in­vi­sí­veis, que en­redam as coisas e de algum modo as ma­nejam. Quando são elas, vivas, a usarem-nos, não há fora delas quais­quer coisas si­tu­adas ou a si­tuar: a fala e o mundo con­subs­tan­ciam-se num mundo só, e pa­rece que re­nas­cemos. Tra­balha-nos um novo senso do real e do hu­mano» (Óscar Lopes, Uma Es­pécie de Mú­sica).

O Óscar. Todos di­ziam, todos dizem «o Óscar», na­quele centro de tra­balho. Todos sa­biam que ti­nham um génio ali à mão, quase do outro lado da rua. Um génio da Língua, da His­tória e da Crí­tica Li­te­rá­rias, da Fi­lo­sofia e da Cul­tura Clás­sica, da Ma­te­má­tica e até da Fí­sica. Um co­ra­joso hu­ma­nista à an­tiga, um clás­sico-mo­derno de in­sa­ciável cu­ri­o­si­dade e sede de saber. Al­guém com uma su­pe­rior in­te­li­gência do mundo e da lin­guagem. E que no en­tanto tra­tava os ca­ma­radas por tu e por tu era tra­tado. Fossem ope­rá­rios, em­pre­gados, sin­di­ca­listas, fossem in­te­lec­tuais, eleitos co­mu­nistas, gente com res­pon­sa­bi­li­dades de di­recção. Re­cordo o sau­doso Sérgio Tei­xeira, an­tigo ope­rário, evo­cando uma vi­agem para Lisboa, com o Óscar a falar-lhe de Ca­mões.

Ele era, ele será sempre, para nós, «o Óscar», o in­te­lec­tual por ex­ce­lência, in­com­pa­rável e in­capaz de trair – ao con­trário de ou­tros – o com­pro­misso que, desde a ju­ven­tude, desde 1944, o vin­culou à classe tra­ba­lha­dora, aos opri­midos, ao pro­jecto co­mu­nista. E pelos quais so­freu, antes de Abril, sem disso vir a fazer gala: a prisão fas­cista, a per­se­guição, a apre­ensão de obras suas pela PIDE, a proi­bição de en­sinar na Uni­ver­si­dade, de se des­locar ao es­tran­geiro para par­ti­cipar em se­mi­ná­rios para os quais era con­vi­dado, de as­sinar ar­tigos com o seu nome.

Era, além do mais, um génio da fra­ter­ni­dade, da so­li­da­ri­e­dade, da em­patia com o seu se­me­lhante, da ca­pa­ci­dade de es­cutar o outro. Al­guém que olhava a vida, o fu­turo, a sua pró­pria pre­sença no mundo como uma aven­tura sem li­mites. E que, por isso, disse al­gures: «Nós só co­nhe­cemos uma fracção mí­nima da re­a­li­dade, es­tamos no início de uma grande aven­tura cós­mica.»

 

Sempre pre­sente

 

Para todos nós, o Óscar era, será sempre, um exemplo para os dias por vir – e não apenas pelo seu saber imenso. Era-o também para ou­tros, muito dis­tantes de nós. Uma men­sagem elec­tró­nica, no dia da sua par­tida: «O ser hu­mano e o in­te­lec­tual mais bri­lhante, mais sábio e mais sim­ples que tive o pri­vi­légio de ter como Pro­fessor na minha vida aca­dé­mica» – pa­la­vras de uma co­lega, de di­reita, sua an­tiga aluna de mes­trado.

Na úl­tima etapa de uma vida de es­tudo e de luta, na sua casa da Bo­a­vista, bem perto do centro de tra­balho, já afec­tado pela cru­el­dade do tempo, da do­ença e do si­lêncio em que mer­gu­lhara, o Óscar era o ca­ma­rada des­po­jado e mo­desto, sempre dis­po­nível para a par­tilha do saber, para a so­li­da­ri­e­dade, para co­la­borar na an­ga­ri­ação de fundos, para juntar con­vic­ta­mente o seu nome ao nosso, quando ne­ces­sário: num abaixo-as­si­nado, num ma­ni­festo, numa edição do Sector In­te­lec­tual. (E há ge­ne­ro­si­dades mi­li­tantes do Óscar que nem se­quer aqui se podem contar.)

Ani­mada de ter­nura e da­quela ami­zade co­mu­nista que é tão sua, a nossa que­rida Lina vi­sitou-o sempre, pres­tando o apoio ne­ces­sário ao Óscar, à fa­mília. (Todos te co­nhecem, Lina, és um es­teio, o sor­riso e o am­paro de que todos pre­cisam nestes dias di­fí­ceis.) E, por isso, nesse fim de tarde em que ve­lá­vamos o ca­ma­rada, es­tavas tão triste e co­mo­vida, ali, no salão se­cular da As­so­ci­ação dos Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto (de que o Óscar era um dos mais an­tigos só­cios), a urna la­deada por duas co­roas be­lís­simas. Ver­melho de flores sobre verde. Ver­melho. Sobre verde. E de­pois con­tavas como, en­quanto os dias lhe per­mi­tiam ainda sair de casa e des­locar-se, o Óscar pedia por vezes à se­nhora que dele cui­dava: «Olhe, vamos antes por ali.» E, apoiado no seu braço, «obri­gava-a» a atra­vessar a rua para o pas­seio do centro de tra­balho. E a fazia con­ti­nuar até che­garem à en­trada. E ela dizia: «Ai, que o se­nhor é um ma­roto. Queria mas era vir até aqui.» É que o Óscar gos­tava do centro de tra­balho, gostou sempre, en­quanto as forças lho con­sen­tiram, de rever e con­viver com os ca­ma­radas.

Por tudo isto – e por todo o resto, que é muito – nos dói muito a par­tida do Óscar. Que sa­bíamos ali ao lado, sempre pre­sente nos mo­mentos di­fí­ceis, nos mo­mentos ne­ces­sá­rios, com a sua cor­tante ci­ência do mundo, da li­te­ra­tura e da lin­guagem. O Óscar, para quem sempre existiu o tu. E que por isso es­creveu, no único poema seu que até hoje veio a lume, numa an­to­logia or­ga­ni­zada pela As­so­ci­ação dos Jor­na­listas e Ho­mens de Le­tras do Porto:

 

Se­gunda pessoa

 

Al­guém diz tu. Al­guém sem nome.

É a terra e o corpo e é o rasto de um sen­tido.

Al­guém diz tu à imagem que se es­garça,

à cer­teza de uma lon­gínqua razão.

Longe. O pas­sado. Nomes, er­rados nomes de de­sejo.

Cego de in­sónia, nem lem­brar te posso.

Nem mesmo em sonho sa­beria ver-te.

És só o pro­nome, tu, a on­dular-me na boca,

norte mag­né­tico num de­ses­pero em sur­dina.

És a sí­laba que dói a dor solar de um sen­tido.

A his­tória avança na cabra-cega sem rostos,

e eu vivo em ti o tu mais só da minha vida.

 



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