Grande João, honrado João
Há homens com três metros de altura.
João Honrado é um dos que conheci com essa dimensão. Por fora, e sobretudo por dentro. Assim o mostra o seu percurso de vida, aquilo a que, noutros registos, nalguns casos não menos honrados, se chama curriculum (ou CV).
Começou a aprender a vida verdadeira aos 12 anos, ao ler este jornal que o irmão mais velho lhe passava, mas sobretudo ao observar e a com-viver com as suas irmãs e os seus irmãos não só de sangue mas de viver Alentejo, em Ferreira e ao redor.
E se aos 12 anos João Honrado lia o Avante!, essa leitura já era um começo de luta, que logo levou para a escola, para as lutas juvenis, e que, a ele, o levaram à prisão (de Beja para Caxias) aos 17 anos, ainda no liceu, por dois meses («apenas para averiguações»… como se de um baptismo se tratasse).
Lutas juvenis em que se integrou de corpo inteiro, o «alentejano do MUD Juvenil» como li algures, e que Álvaro Cunhal, no seu prefácio (de 1998) ao relatório ao IV Congresso do PCP, de 1946, incluiu entre 20 nomes «a título de exemplos significativos (dos que) vieram a assumir grandes responsabilidades na Direcção do Partido e que se mostraram sempre vida fora fiéis aos seus ideais comunistas».
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Um percurso de vida, logo adulto, ao aderir ao PCP, com intervenção na campanha de Norton de Matos e nova prisão. Esta já com sentença de 20 meses e com as famigeradas «medidas de segurança».
Prisão que foi até Agosto de 1954, de onde saiu para quatro curtos meses de «tréguas» para «mergulhar» na clandestinidade, de onde de novo foi arrancado pela PIDE em 25 de Abril de 1962. Antes, tinham sido quase oito anos de intensa actividade clandestina, cuja crónica preencheria de lições o relato desse percurso de uma vida. A que se seguiram oito anos e meio de prisão. Também de luta. Que, para homens como João Honrado, tempo de prisão era, também, tempo de luta. Porque todo o tempo de vida o é.
Como o foi o tempo do julgamento, de que ficou como documento a defesa que escreveu. Defesa que não lhe deixaram fazer, com «argumentos» de sopapos, e violência, e arrastamento para o calabouço sob as ordens do famigerado juiz-pide Caldeira. Mas documento merecedor de ser lido, até pelo aspecto muito relevante da posição clara, sem titubeios, sobre a questão colonial. Em 1962.
Assim se somaram mais de 13 anos vividos «dentro» de Aljube, Caxias, Penitenciária e Peniche. Em luta.
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Foi em 1 de Agosto de 1970 que João Honrado saiu da prisão. Pouco tempo depois, apareceu-nos na Prelo Editora (sempre os livros, a edição, os jornais, a cultura…), e por lá ficou a trabalhar. Num meio-tempo de mútuo e calado assentimento e compromisso quanto ao outro meio-tempo (que a tempo inteiro poderia passar). Em que uma grande amizade nasceu e se foi fortalecendo. Tanta estória para contar… que o João era um homem de contar histórias, como o fez em alguns livros como «Textos Alentejanos» e «Crónicas de Dizer Alentejo», e era um homem com uma vida de histórias para serem contadas.
Eu que o diga, que tive a sorte de, para além do convívio amigo e quotidiano, ter feito, com o João, uma daquelas viagem em que os homens se ficam a conhecer muito bem, ao longo de milhares de quilómetros, fechados num automóvel entre Lisboa e Bruxelas e volta. Como o João se transformou, como não mais se calou, passada a fronteira do Caia, depois de termos feito um trajecto entre Lisboa e Elvas, silenciosos e receosos do que nos (e particularmente a ele) poderia acontecer ao chegar à fronteira controlada pela PIDE!...
E tanta, tanta mais coisa!… tanto gesto amigo, de camarada, como – com a sua sensibilidade a saber o que esse gesto representaria para mim… – o Avante! editado no dia do Congresso de 1974 deixado na minha cama às tantas da madrugada, na casa em que ele também dormia quando queria.
Adiante. Deixemo-nos de moengas. Talvez num futuro caderno de aponta mentes…
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João Honrado ainda teve o «bónus» de uns escassos dias de prisão, preso já em Abril de 1974 por motivos que não chegámos a entender (como se para a PIDE fossem necessários motivos…), e libertado antes de ser eu preso, a 16 de Abril, e só nos tivéssemos encontrado depois do Grande Dia, do 25 de Abril de 1974.
E depois do 25 de Abril, foi outro o João Honrado. Como todos nós. E foi, sempre!, o mesmo João Honrado.
Integrou, de imediato, a Comissão de Extinção da PIDE-DGS, foi membro Comissão Distrital de Beja e da Direcção da Organização Regional do Alentejo do Partido, foi deputado à Assembleia Constituinte, esteve na primeira hora e acção para se recuperarem e fazerem jornais – «Diário do Alentejo», «Alentejo Popular» – esteve sempre em todas as lutas nossas. Sempre João, e sempre Honrado. O nosso (com outros como ele) Alentejo.
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Nos últimos anos quase só nos encontrávamos pelo telefone (invenção nossa, dos trabalhadores, como ele nunca o esquecia), faltando-nos a alegria do abraço fraterno, material e forte. Pelo telefone, trocávamos boletins de saúde e tínhamos sempre pelo menos uma meia cara para sorrir à morte que sabíamos andar pelas proximidades. A magana…
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Acabaram os telefonemas, João. Um grande beijo para a Alice e uma gargalhada nossa para balanço e fecho de contas. Nada mais irrita a morte que te levou, e os que lhe dão vivas, do que a certeza que o futuro não é deles, é nosso, é da vida. E que homens como tu, com o teu percurso de vida o tornam, ao futuro, mais nosso, mais próximo.