A globalização do medo

Correia da Fonseca

Creio que não há muito tempo, em­bora seja certo que a me­mória muito nos atraiçoa quanto à ve­lo­ci­dade com que por nós passam os dias, os meses, os anos, o canal 2 da TVE trans­mitiu um pro­grama ver­da­dei­ra­mente no­tável a que só pude aceder, e apenas par­ci­al­mente, graças às vir­tudes da In­ternet, esse enorme monte de lixo onde é pos­sível en­con­trar ver­da­deiras pre­ci­o­si­dades. Nesse tal pro­grama es­tavam dois es­cri­tores e jor­na­listas que se apli­cavam a ex­plicar o mundo ac­tual e a de­nun­ciar os que todos os dias fazem o que é pre­ciso para que o mundo se trans­forme num vasto campo de es­cravos para be­ne­fício de um re­la­ti­va­mente pe­queno grupo de se­nhores. Os jor­na­listas e es­cri­tores eram o suíço Jean Zi­e­gler e o uru­guaio Edu­ardo Ga­leano, ambos com larga e ex­ce­lente re­pu­tação in­ter­na­ci­onal. Me­rece que aco­lhamos em letra de forma al­guma pe­quena parte do que eles, com as suas re­co­nhe­cidas lu­cidez e com­pe­tência, então dis­seram aos seus en­tre­vis­ta­dores e os te­les­pec­ta­dores pu­deram de­pois ouvir. Disse Edu­ardo Ga­leano que o grande medo deste nosso tempo é «o medo de perder o em­prego», a «in­se­gu­rança la­boral» que pode re­meter qual­quer ci­dadão para um sub­mundo de mi­séria sem fim à vista; que mesmo nas zonas de­sen­vol­vidas es­tamos a as­sistir a «uma ter­ceiro-mun­di­a­li­zação inin­ter­rupta»; que «o tra­balho vale hoje em dia menos que o lixo» nos cri­té­rios e na prá­tica dos se­nhores do mundo que con­vertem o tra­ba­lhador «num men­digo pelo em­prego e pelo sa­lário». Quanto a Jean Zi­e­gler, de­nun­ciou a glo­ba­li­zação «como uma grande fraude» e a tri­logia Banco Mun­dial/​Fundo Mo­ne­tário In­ter­na­ci­onal/​Or­ga­ni­zação Mun­dial do Co­mércio como um trio de «bom­beiros pi­ró­manos»; re­feriu que apenas 500 em­presas con­trolam 52% das ri­quezas mun­diais e que esses ver­da­deiros donos do mundo não estão su­jeitos a qual­quer con­trolo. Su­bli­nhou ainda que, pelos crimes co­me­tidos, a esse pe­queno nú­mero de «donos do mundo» ha­veria que metê-los em pri­sões, mas que isso não é pos­sível porque essa gente detém as efec­tivas chaves de todas as pri­sões. Cabe aqui re­cordar que, um dia, Zi­e­gler, es­pe­ci­al­mente es­tu­dioso da si­tu­ação no Ter­ceiro Mundo e da ex­plo­ração bár­bara a que ele é sub­me­tido, disse que «cada cri­ança que morre de fome é uma cri­ança as­sas­si­nada».

A in­dig­nação como raiz

Um ci­dadão por­tu­guês ouve Edu­ardo Ga­leano e Jean Zi­e­gler, aper­cebe-se de que o seu país caiu nas mãos de um grupo ca­ni­na­mente se­guidor das or­dens não es­critas mas efec­tivas dos donos do mundo de­nun­ci­ados por estes dois ho­mens (nas mãos de Quis­lings e Pé­tains, como lu­ci­da­mente lhes chamou Vi­riato So­ro­menho Mar­ques em cró­nica re­cente) e na­tu­ral­mente é to­mado pelo de­sejo in­tenso de que­brar as ca­deias do medo mun­di­a­li­zado, de romper ca­mi­nhos para a cons­trução, ainda que di­fícil e agreste, de um país in­te­grado num ver­da­deiro mundo dos ho­mens, não numa es­pécie de enorme co­lónia penal com di­men­sões à es­cala pla­ne­tária. Não se tra­tará, é claro, de uma ta­refa fácil: bem se sabe que os com­bates de li­ber­tação não são fá­ceis, mas também se sabe, porque a His­tória no-lo vem en­si­nando ao longo dos sé­culos, que são ine­vi­tá­veis. Há algum tempo, um pres­ti­moso ser­vidor do sis­tema do­mi­nante, Francis Fu­kuyama, tentou con­vencer as gentes de que ha­víamos che­gado ao fim da His­tória, o que muito con­viria aos que estão co­mo­da­mente ins­ta­lados e usu­fruem dos mais as­tro­nó­micos pro­dutos de mul­ti­dis­ci­pli­nares pi­lha­gens, mas esse sonho cor-de-rosa já en­trou em pleno des­cré­dito. É que, ao con­trário do que Fu­kuyama pa­recia crer, os povos não se re­signam a serem es­cravos, e o medo de­nun­ciado por Zi­e­gler e por Ga­leano é uma forma pe­cu­liar de es­cra­vidão. De onde emergem, por força da pró­pria na­tu­reza dos ho­mens, da in­con­tor­nável ape­tência por uma exis­tência onde todas as formas fun­da­men­tais de re­a­li­zação hu­mana sejam pos­sí­veis, a in­dig­nação, a re­cusa, a re­sis­tência. Te­nham pa­ci­ência os ti­ranos de rosto su­pos­ta­mente hu­mano, os la­rá­pios de gi­gan­tesca di­mensão, os al­gozes sem es­crú­pulos: os povos são assim. E o povo por­tu­guês não é di­fe­rente de qual­quer outro.

 



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