Concerto N.º 5
“Como escreveu Álvaro Cunhal no ensaio A arte, o artista e a sociedade, “há acordes de Beethoven que ficam sempre no ouvido como a repetirem o agrado inesgotável”
De uma forma geral usamos o termo «concerto» com o significado de espectáculo público onde se toca música, mas no presente contexto, a palavra é usada com outro sentido: como designativo lexical de um determinado tipo (forma) de peça de música, em que usualmente um instrumento solo, neste caso o piano, intervém em contraste ou em contraponto com uma orquestra. Outros idiomas têm, neste particular, maior riqueza lexical; é o caso, por exemplo, do inglês, com os termos concert e concerto, oferecendo à partida a possibilidade de distinguir estes dois conteúdos significantes (concert para designar espectáculo, concerto para quando desejamos referir-nos a um tipo de peça musical). Seja como for, com o significado que aqui lhe damos, a palavra só começou a ser utilizada a partir do século XVIII, pois na anterior centúria era frequentemente usado para rotular composições musicais para voz e instrumentos. Note-se que, na acepção mais moderna, setecentista e posterior, que neste caso se aplica, um concerto pode ter mais do que um instrumento solo, e nem precisamos de sair do universo beethoveniano para encontrar cristalino exemplo: basta que nos lembremos do célebre Triplo concerto, op.56.
Foi a forma de concerto em três andamentos desenvolvida por Vivaldi (por isso chamada «género Vivaldi» ou «tipo Vivaldi») que sobreviveu historicamente, evoluindo do Barroco para o Clássico. Os concertos para piano de Mozart são superior exemplo do acabamento clássico dado a esse género. E é precisamente nessa linha evolutiva que nos aparece Ludwig van Beethoven. Como músico revolucionário que foi, Beethoven não podia deixar de introduzir inovações. Este seu 5.º concerto para piano, o mais logo e último que compôs, é bem demonstrativo disso: a forma adquire nova dimensão, dando-se uma espécie de aumento de escala, efeito que desde logo resulta do recurso a um maior número e variedade de instrumentos. Mudança só passível de ser completamente entendida em função de factores extramusicais, como o progresso técnico-científico e as consequentes transformações infra-estruturais operadas no viver humano, ou a afirmação de novas ideias, de uma nova ideologia, de uma nova Weltanschauung (concepção do mundo). Em partituras como esta, a parte de piano e, portanto, por lhe estar intrinsecamente associada, também a figura do instrumentista solista, sujeito executante, é já o exemplo nítido do protagonismo social do indivíduo empreendedor, figura central no mundo capitalista que então historicamente se afirma. Está aberto o caminho que conduzirá ao brilhantismo do intérprete solista romântico, de que Franz Liszt será máximo representante.
Este Imperador requer um intérprete solista com capacidades pianísticas imperiais, dadas as dificuldades técnicas e de expressividade colocadas pela partitura. Assim como convoca o grande piano de concerto moderno, de modo a extrair máximo volume de som e a tirar partido da grande amplitude do teclado. De notar, como as mãos do pianista percorrem o teclado de uma ponta à outra. Construído sob a forma sonata, o 1.º andamento, Allegro (a única parte que escutaremos), é muito longo, correspondendo, com os seus quase seiscentos compassos(!) tocados em +/-20 minutos, a mais de metade da duração total da obra. O que talvez concorra para um relativo desequilíbrio no todo. O instrumento solista assume imediato protagonismo, sem demorada introdução musical. Apenas um amplo acorde da orquestra sobre o qual o piano se faz ouvir rompendo com uma frase virtuosística a solo; depois a orquestra volta a intervir com acordes isolados. É o início do intenso diálogo piano/orquestra que sob formas variadas se prolongará até o fim do andamento. Quando a orquestra assume pela primeira vez o protagonismo introduzindo o 1.º tema, o esplendor sinfónico da obra fica inequivocamente expresso. É uma dimensão sinfónica imperial, coerentemente apresentada na luminosa tonalidade de mi bemol maior (a mesma que o compositor utilizou no 1.º andamento da Sinfonia n.º 3, a Heróica). Estabelecendo contraste com o primeiro tema, o segundo surge em pianíssimo. Chamo a atenção para a importância dos trilos na expressividade pianística.
Há nesta obra duas inovações beethovenianas que, a meu ver, merecem ser postas em especial evidência, uma entre o 2.º e o 3.º (último) andamento e um segundo, no 1.º andamento, a cadência. No período clássico era usual introduzir na parte final do 1.º andamento dos concertos uma secção designada pelo termo italiano cadenza (de onde deriva o português cadência). Destinava-se a proporcionar ao intérprete solista a exibição dos seus talentos virtuosísticos. Nessa medida, o compositor limitava-se a rabiscar a palavra cadenza na partitura ou então colocava uma fermata (elemento da notação musical indicativo de suspensão). Não escrevia nenhuma nota de música. Era deixada ao intérprete a liberdade de tocar o que bem entendesse. Muitas vezes, nos períodos mais recuados da história do concerto clássico, o solista improvisava e a cadência era não-temática. Nos anos 80 do século XVIII Mozart começou a compor cadências tematicamente ligadas ao andamento a que se destinavam. Mas um compositor podia escrever uma cadência destinada a um concerto da autoria de outro compositor. Pela mão de Beethoven as cadências temáticas tornam-se regra composicional. Para além deste legado normativo, neste seu último concerto o músico de Bonn tomou a iniciativa de escrever a cadência na própria partitura, tornando-a assim, obrigatoriamente, parte integrante da obra. Também isto passou a ser a norma – a escrita completa das passagens a solo.
Composto em 1809, na cidade de Viena, mas só estrado em 1811, na Gewandhaus de Leipzig, com Friedrich Schneider ao piano, o Concerto n.º 5 recebeu, logo nos seus primeiros tempos de existência, o epíteto de «Imperador». O termo passou a figurar sempre no título. Sabe-se, porém, que tal não se deve ao seu criador. Beethoven não nutria grande simpatia por imperadores e não estimava esse designativo. Os historiadores têm encontrado várias explicações para esta denominação absolutamente instituída e popularizada. Segundo alguns, terá sido o editor Johann Cramer quem, face à imponência da obra, a considerou imperial, colocando no título da edição inglesa «Emperor». Conta-se também que na estreia um oficial francês presente na plateia terá dito, depois de escutar uma das grandiosas freses musicais: C’est l’Emperor! – Como quem diz: eis a representação musical de Napoleão Bonaparte.
No entanto, o primeiro biógrafo do compositor, e seu amigo pessoal, Anton Schindler, deu explicação mais prosaica, talvez por isso geralmente ignorada até mesmo pelos académicos. Recordou que o Concerto foi estreado em Viena no dia em que se festejava o aniversário do Imperador.
O facto de a obra ter sido dedicada ao Arquiduque Rodolfo (Rudolf), aluno e protector do compositor e irmão mais novo do Imperador, em nada terá influído para o surgir do epíteto.
Este 5.º Concerto – com «Imperador» no título ou não – é pura expressão de genialidade. Prova de que o gesto criativo artisticamente genial pode brotar em circunstâncias muito desfavoráveis, tal como a vida que floresce nos mais inóspitos desertos. A história geral da arte dá-nos provas desse paradoxal fenómeno. Na arte, a força criativa é por vezes tão titânica que consegue encontrar energia galvanizante onde só parecem existir factores de negação da actividade artística. O ano de 1809 é um período tremendo para todos os habitantes de Viena. Em Maio desse ano, Napoleão invadiu a cidade, com um enorme poder de fogo de artilharia, obrigando a população a fugir. O Músico refugiou-se em casa de seu irmão, tendo mesmo assim que proteger com almofadas os seus sensíveis ouvidos do ruído estrondoso causado pelas detonações dos canhões. «Passámos por uma grande quantidade de miséria», escreveu numa carta. Mas nem os horrores da guerra napoleónica obstaram a que o seu «Imperador» estivesse concluído no final desse ano. A genialidade vencia a brutalidade.
Como escreveu Álvaro Cunhal no ensaio A arte, o artista e a sociedade, «há acordes de Beethoven que ficam sempre no ouvido como a repetirem o agrado inesgotável».