Sagração da Primavera
“A dimensão inovadora é indesmentível. E não menos o é o abalo causado pela obra, por isso mesmo erguida ao estatuto de marco cultural de mítica dimensão e, no domínio da arte dos sons, momento referencial da sua história no século XX”
Obra transbordante de modernismo, desde logo na essencial (e, a meu ver, determinante) vertente musical, só por si um marco na inovação artística, mas também pelo modo como essa nova sonoridade se combina com a vertente imagética da coreografia, dos figurinos, da cenografia. É um verdadeiro símbolo da modernidade, bem como exemplo maior de obra revolucionária. No entanto, esta sua dimensão reveste-se de algum mistério resultante de um curioso conjunto de elementos contraditórios. Embora a dimensão de «obra revolucionária» se nos apresente como uma evidência desde o dia da tumultuosa estreia no Théâtre des Champs-Elysées, a verdade é que a linguagem musical utilizada não representa nenhuma ruptura com o universo tonal e modal que a antecede. Continua a ser utilizado o idioma da tonalidade e não o da atonalidade. Daí que o compositor, maestro e musicólogo Pierre Boulez, no seu importante ensaio Stravinsky demeur (1951), tenha classificado a linguagem de A Sagração como obsoleta. Além disso, a obra não gerou outras criações similares. Até o próprio Stravinsky caminhou de imediato em outra direcção, afastando-se dessas «extravagâncias pós-romanticas». Estranhamente, Le Sacre du Printemps permaneceu um caso isolado, ao invés do que seria espectável, ou até mesmo exigível, de uma obra dita «revolucionária» algo que, por definição, se assim se pode dizer, devia transformar os actos criativos sucedâneos, fazendo aparecer outras criações à sua imagem. «Sorte paradoxal», chamou-lhe François-René Tranchefort, pois nesse isolamento ela «abriu o ouvido musical ao universo sonoro do futuro». Abriu também, acrescento eu, caminho à liberdade de expressão artística, alentando outros compositores para a exploração de novos rumos.
A dimensão inovadora é indesmentível. E não menos o é o abalo causado pela obra, por isso mesmo erguida ao estatuto de marco cultural de mítica dimensão e, no domínio da arte dos sons, momento referencial da sua história no século XX. O já citado Boulez colocava o acento na «invenção rítmica», considerando ser esse o principal factor evolutivo, o ingrediente revolucionário primordial.
Correndo os riscos inerentes ao juízo comparativo entre artes diferentes, talvez se possa afirmar que Le Sacre du Printemps está para a história da música como a tela de Picasso Les demoiselles d’Avignon (1907) está para a história da pintura.
A reforçar e a apimentar o tal misterioso está a resistência ao envelhecimento. Velha centenária, desde Maio passado, a partitura stravinskiana permanece jovem e moderna. Quando se escuta esta música fica a impressão de estarmos diante de uma criação contemporânea, actual, moderna, com a frescura do acabado de nascer. Não duvido, nem por um instante, ir ser essa a sensação colhida pelos espectadores no concerto da Festa do Avante!. Qual a razão dessa resistência à ancianidade? Que elixir a produz?
A complicar mais as coisas está o facto, também ele bastante incontestável, de a data de estreia da Sagração representar o momento da chegada do modernismo à arte da dança. Dito de outro modo, é o momento fundador da dança moderna. Instante revolucionário – ainda mais na história da dança do que na história da música. Mas do meu ponto de vista é a música o factor determinante dessa inauguração. Isto é, embora Stravinsky tivesse dito, depreciando, que Vaslav Nijinsky ignorava as noções mais elementares de música, sendo um «pobre rapaz [que] não sabia nem ler música nem tocar qualquer instrumento», parece-me ter sido o contágio musical a causa da evolução coreográfica, da inovação introduzida nos movimentos corporais dos dançarinos. Essa sim, uma nítida exemplaridade. Qualidade do que é revolucionário.
Seja qual for a dose de revolucionarismo no estrito domínio da música, da dança, da cenografia ou dos figurinos, há que dizer que esse traço se projectou para além do terreno artístico. Até os dias de hoje, a obra tem estado recorrentemente associada a momentos políticos da acção progressista ou de evocação do politicamente revolucionário. Claro exemplo disso é este concerto de homenagem: os responsáveis pela programação escolheram A Sagração da Primavera em função do facto de o homenageado se chamar Álvaro Cunhal, o histórico dirigente político revolucionário. E não posso deixar de recordar ter sido com esta mesma obra que o grande bailarino e coreógrafo francês Maurice Béjart se apresentou em Lisboa, em 1968, com o «Ballet du XXe. Siècle», fazendo, num Coliseu dos Recreios a abarrotar, um «comício» artístico antifascista que lhe valeu a imediata expulsão de Portugal, ordenada por Salazar na própria noite do espectáculo, no dia 6 de Junho de 1968 (dia da morte de Robert Kennedy na sequência de um atentado, acontecimento que serviu de pretexto para Béjart subir ao palco e discursar contra a Ditadura). Agentes da PIDE detiveram Maurice Béjart, no Hotel Borges, no Chiado, onde se encontrava alojado, e deixaram-no às 3 horas da madrugada num posto fronteiriço espanhol. É o habitual “respeito” das ditaduras pela Cultura.
Em Fevereiro de 1909, sob a impressão causada pela audição, durante um concerto em S.Petersburgo, de uma peça orquestral do jovem compositor russo Stravinsky, o empresário Sergey Diagihlev convida-o para colaborar com os seus afamados Ballets Russes, em Paris. É no âmbito desse trabalho de cooperação artística que irão nascer algumas das principais partituras sinfónicas do século XX (O Pássaro de Fogo, Petruchka, A Sagração da Primavera). Em texto autobiográfico o compositor revelou que a ideia embrionária da Sagração lhe ocorreu de forma súbita quando ainda estava a terminar O Pássaro de Fogo: fazer um novo bailado centrado num rito sacrificial pagão, em que uma jovem é sacrificada ao deus da Primavera, dançando até à morte diante de velhos sábios. Sexo, procriação, impulsos primários, energias vitais, contracções corporais, odores, o pulsar das entranhas da natureza, tudo isto musicalmente expresso num ritual sinfónico pagão que este para se chamar Grande Sacrifício, título depois atribuído à 2.ª parte que culmina com a Dança sacrificial; a 1.ª parte tem por título A Adoração da Terra. Conteúdo explosivo, talvez anunciador de escândalo. Mas Gabriel Astruc, proprietário do Théâtre des Champs-Elysées, queria que essa sala parisiense apresentasse a «arte do seu tempo». Estaria o público preparado para assimilar todas as novidades? A agitada estreia da Sagração mostrou que não.
O pintor russo Nicolai Rerich (Nicholas Roerich, no ocidente), que era também historiador e arqueólogo especializado em arte eslava, fez o cenário e forneceu informação cultural ao músico. No essencial, a obra foi escrita no Inverno de 1912/13, em Clarens, na Suíça. A coreografia foi, naturalmente, de Nijinski que já antes dançara o Petruchka (1911).
A estreia, ocorrida em Paris, no Théâtre des Champs-Elysées, no dia 29 de Maio de 1913, uma quarta-feira, foi um dos mais tumultuosos acontecimentos da história da música, ou até mesmo da história da arte, em geral. O maestro era Pierre Monteux. Não foi preciso esperar muito para ver o público começar a agitar-se nas cadeiras. Bastou a Introdução. Confusos e perturbados com o que iam escutando e vendo os espectadores começaram a falar uns com os outros, a apupar, a agredirem-se, a arremessarem objectos para os músicos, fazendo com que a dada altura os bailarinos em palco deixassem de conseguir ouvir a orquestra e, nos bastidores, o próprio Nijinski não conseguisse fazer-se ouvir para dar as entradas. Na segunda parte, foi possível manter algum silêncio. Mas estava consumado o escândalo histórico. Um escândalo sucesso, ou, como melhor dizem os franceses, un succès de scandale, porque fez com que por todo o lado se falasse da obra, passando Stravinsky a ser mundialmente célebre como «o compositor da Sagração».
A Sagração da Primavera é uma obra com um elevado grau de dificuldade para qualquer orquestra. Logo desde os primeiros compassos. Inicia-se com um curto solo de fagote, em que o instrumento é chamado a tocar num registo ingrato, inusual, por ser demasiado agudo. O tema, inspirado numa canção popular lituana (as raízes populares são constantes), prende de imediato a atenção. Depois, vão-se-lhe juntando os outros sopros (de madeira e metal). Na Introdução, os primeiros 3 minutos, só intervêm instrumentos de sopro. Só depois entram em acção os instrumentos de corda (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos). É exigida uma orquestra muito grande. Isso, acrescido da dificuldade de execução fez com que a obra demorasse a entrar no reportório habitual das salas de concerto. Parecia ser impossível de executar.
Chamo a atenção para os brutais efeitos acústicos, para a acentuação sincopada, para os jogos de timbres, para os contrastes de sonoridades instrumentais, o uso de pesados acordes repetitivos (como acontece logo nas primeiras intervenções das cordas), concretizando uma grande pujança rítmica e causando, no seu conjunto, um enorme impacto auditivo. Jacques Rivière, que foi um dos primeiros a escrever sobre a Sagração, pouco depois da agitada estreia, falava de «obra pura», de «recusa do supérfluo», porque «tudo aqui é franco, intacto, límpido e rude». Era um dos primeiros a perceber que estava diante de uma absoluta obra-prima. Uma obra-prima que incentivou a liberdade de expressão artística.