Igor Stravinsky

Sagração da Primavera

“A di­mensão ino­va­dora é in­des­men­tível. E não menos o é o abalo cau­sado pela obra, por isso mesmo er­guida ao es­ta­tuto de marco cul­tural de mí­tica di­mensão e, no do­mínio da arte dos sons, mo­mento re­fe­ren­cial da sua his­tória no sé­culo XX”

Cada época his­tó­rica tem as suas fi­guras mí­ticas e o sé­culo da te­le­visão, também com a mas­si­fi­cação da fo­to­grafia e do ci­nema, com um inau­dito poder da imagem, não podia deixar de ser par­ti­cu­lar­mente pró­digo no se­mentio de tais fe­nó­menos. Al­gumas ima­gens pes­soais, a de Cha­plin, a de Eins­tein, a de Ma­rilyn Monroe, quais ícones pro­fanos, vêm-nos logo à me­mória. Mas será que também existem, nos anos No­ve­centos, obras de arte mí­ticas, mesmo que inex­pres­sá­veis numa imagem única, como acon­tece com a arte or­feica? Se bus­carmos esse equi­va­lente mu­sical creio que a es­colha só pode re­cair sobre Le Sacre du Prin­temps de Igor Stra­vinsky, ele pró­prio tor­nado fi­gura mí­tica dessa mesma cen­túria dos ex­tremos por efeito do enorme im­pacto es­té­tico cau­sado por essa sua par­ti­tura.
Obra trans­bor­dante de mo­der­nismo, desde logo na es­sen­cial (e, a meu ver, de­ter­mi­nante) ver­tente mu­sical, só por si um marco na ino­vação ar­tís­tica, mas também pelo modo como essa nova so­no­ri­dade se com­bina com a ver­tente ima­gé­tica da co­re­o­grafia, dos fi­gu­rinos, da ce­no­grafia. É um ver­da­deiro sím­bolo da mo­der­ni­dade, bem como exemplo maior de obra re­vo­lu­ci­o­nária. No en­tanto, esta sua di­mensão re­veste-se de algum mis­tério re­sul­tante de um cu­rioso con­junto de ele­mentos con­tra­di­tó­rios. Em­bora a di­mensão de «obra re­vo­lu­ci­o­nária» se nos apre­sente como uma evi­dência desde o dia da tu­mul­tuosa es­treia no Théâtre des Champs-Ely­sées, a ver­dade é que a lin­guagem mu­sical uti­li­zada não re­pre­senta ne­nhuma rup­tura com o uni­verso tonal e modal que a an­te­cede. Con­tinua a ser uti­li­zado o idioma da to­na­li­dade e não o da ato­na­li­dade. Daí que o com­po­sitor, ma­estro e mu­si­có­logo Pi­erre Boulez, no seu im­por­tante en­saio Stra­vinsky de­meur (1951), tenha clas­si­fi­cado a lin­guagem de A Sa­gração como ob­so­leta. Além disso, a obra não gerou ou­tras cri­a­ções si­mi­lares. Até o pró­prio Stra­vinsky ca­mi­nhou de ime­diato em outra di­recção, afas­tando-se dessas «ex­tra­va­gân­cias pós-ro­man­ticas». Es­tra­nha­mente, Le Sacre du Prin­temps per­ma­neceu um caso iso­lado, ao invés do que seria es­pec­tável, ou até mesmo exi­gível, de uma obra dita «re­vo­lu­ci­o­nária» algo que, por de­fi­nição, se assim se pode dizer, devia trans­formar os actos cri­a­tivos su­ce­dâ­neos, fa­zendo apa­recer ou­tras cri­a­ções à sua imagem. «Sorte pa­ra­doxal», chamou-lhe Fran­çois-René Tran­che­fort, pois nesse iso­la­mento ela «abriu o ou­vido mu­sical ao uni­verso so­noro do fu­turo». Abriu também, acres­cento eu, ca­minho à li­ber­dade de ex­pressão ar­tís­tica, alen­tando ou­tros com­po­si­tores para a ex­plo­ração de novos rumos.
A di­mensão ino­va­dora é in­des­men­tível. E não menos o é o abalo cau­sado pela obra, por isso mesmo er­guida ao es­ta­tuto de marco cul­tural de mí­tica di­mensão e, no do­mínio da arte dos sons, mo­mento re­fe­ren­cial da sua his­tória no sé­culo XX. O já ci­tado Boulez co­lo­cava o acento na «in­venção rít­mica», con­si­de­rando ser esse o prin­cipal factor evo­lu­tivo, o in­gre­di­ente re­vo­lu­ci­o­nário pri­mor­dial.
Cor­rendo os riscos ine­rentes ao juízo com­pa­ra­tivo entre artes di­fe­rentes, talvez se possa afirmar que Le Sacre du Prin­temps está para a his­tória da mú­sica como a tela de Pi­casso Les de­moi­selles d’A­vignon (1907) está para a his­tória da pin­tura.
A re­forçar e a api­mentar o tal mis­te­rioso está a re­sis­tência ao en­ve­lhe­ci­mento. Velha cen­te­nária, desde Maio pas­sado, a par­ti­tura stra­vins­kiana per­ma­nece jovem e mo­derna. Quando se es­cuta esta mú­sica fica a im­pressão de es­tarmos di­ante de uma cri­ação con­tem­po­rânea, ac­tual, mo­derna, com a fres­cura do aca­bado de nascer. Não du­vido, nem por um ins­tante, ir ser essa a sen­sação co­lhida pelos es­pec­ta­dores no con­certo da Festa do Avante!. Qual a razão dessa re­sis­tência à an­ci­a­ni­dade? Que elixir a produz?
A com­plicar mais as coisas está o facto, também ele bas­tante in­con­tes­tável, de a data de es­treia da Sa­gração re­pre­sentar o mo­mento da che­gada do mo­der­nismo à arte da dança. Dito de outro modo, é o mo­mento fun­dador da dança mo­derna. Ins­tante re­vo­lu­ci­o­nário – ainda mais na his­tória da dança do que na his­tória da mú­sica. Mas do meu ponto de vista é a mú­sica o factor de­ter­mi­nante dessa inau­gu­ração. Isto é, em­bora Stra­vinsky ti­vesse dito, de­pre­ci­ando, que Vaslav Ni­jinsky ig­no­rava as no­ções mais ele­men­tares de mú­sica, sendo um «pobre rapaz [que] não sabia nem ler mú­sica nem tocar qual­quer ins­tru­mento», pa­rece-me ter sido o con­tágio mu­sical a causa da evo­lução co­re­o­grá­fica, da ino­vação in­tro­du­zida nos mo­vi­mentos cor­po­rais dos dan­ça­rinos. Essa sim, uma ní­tida exem­pla­ri­dade. Qua­li­dade do que é re­vo­lu­ci­o­nário.
Seja qual for a dose de re­vo­lu­ci­o­na­rismo no es­trito do­mínio da mú­sica, da dança, da ce­no­grafia ou dos fi­gu­rinos, há que dizer que esse traço se pro­jectou para além do ter­reno ar­tís­tico. Até os dias de hoje, a obra tem es­tado re­cor­ren­te­mente as­so­ciada a mo­mentos po­lí­ticos da acção pro­gres­sista ou de evo­cação do po­li­ti­ca­mente re­vo­lu­ci­o­nário. Claro exemplo disso é este con­certo de ho­me­nagem: os res­pon­sá­veis pela pro­gra­mação es­co­lheram A Sa­gração da Pri­ma­vera em função do facto de o ho­me­na­geado se chamar Álvaro Cu­nhal, o his­tó­rico di­ri­gente po­lí­tico re­vo­lu­ci­o­nário. E não posso deixar de re­cordar ter sido com esta mesma obra que o grande bai­la­rino e co­reó­grafo francês Mau­rice Bé­jart se apre­sentou em Lisboa, em 1968, com o «Ballet du XXe. Siècle», fa­zendo, num Co­liseu dos Re­creios a abar­rotar, um «co­mício» ar­tís­tico an­ti­fas­cista que lhe valeu a ime­diata ex­pulsão de Por­tugal, or­de­nada por Sa­lazar na pró­pria noite do es­pec­tá­culo, no dia 6 de Junho de 1968 (dia da morte de Ro­bert Ken­nedy na sequência de um aten­tado, acon­te­ci­mento que serviu de pre­texto para Bé­jart subir ao palco e dis­cursar contra a Di­ta­dura). Agentes da PIDE de­ti­veram Mau­rice Bé­jart, no Hotel Borges, no Chiado, onde se en­con­trava alo­jado, e dei­xaram-no às 3 horas da ma­dru­gada num posto fron­tei­riço es­pa­nhol. É o ha­bi­tual “res­peito” das di­ta­duras pela Cul­tura.
Em Fe­ve­reiro de 1909, sob a im­pressão cau­sada pela au­dição, du­rante um con­certo em S.Pe­ters­burgo, de uma peça or­ques­tral do jovem com­po­sitor russo Stra­vinsky, o em­pre­sário Sergey Di­a­gihlev con­vida-o para co­la­borar com os seus afa­mados Bal­lets Russes, em Paris. É no âm­bito desse tra­balho de co­o­pe­ração ar­tís­tica que irão nascer al­gumas das prin­ci­pais par­ti­turas sin­fó­nicas do sé­culo XX (O Pás­saro de Fogo, Pe­tru­chka, A Sa­gração da Pri­ma­vera). Em texto au­to­bi­o­grá­fico o com­po­sitor re­velou que a ideia em­bri­o­nária da Sa­gração lhe ocorreu de forma sú­bita quando ainda es­tava a ter­minar O Pás­saro de Fogo: fazer um novo bai­lado cen­trado num rito sa­cri­fi­cial pagão, em que uma jovem é sa­cri­fi­cada ao deus da Pri­ma­vera, dan­çando até à morte di­ante de ve­lhos sá­bios. Sexo, pro­cri­ação, im­pulsos pri­má­rios, ener­gias vi­tais, con­trac­ções cor­po­rais, odores, o pulsar das en­tra­nhas da na­tu­reza, tudo isto mu­si­cal­mente ex­presso num ri­tual sin­fó­nico pagão que este para se chamar Grande Sa­cri­fício, tí­tulo de­pois atri­buído à 2.ª parte que cul­mina com a Dança sa­cri­fi­cial; a 1.ª parte tem por tí­tulo A Ado­ração da Terra. Con­teúdo explo­sivo, talvez anun­ci­ador de es­cân­dalo. Mas Ga­briel As­truc, pro­pri­e­tário do Théâtre des Champs-Ely­sées, queria que essa sala pa­ri­si­ense apre­sen­tasse a «arte do seu tempo». Es­taria o pú­blico pre­pa­rado para as­si­milar todas as no­vi­dades? A agi­tada es­treia da Sa­gração mos­trou que não.
O pintor russo Ni­colai Re­rich (Ni­cholas Ro­e­rich, no oci­dente), que era também his­to­ri­ador e ar­queó­logo es­pe­ci­a­li­zado em arte es­lava, fez o ce­nário e for­neceu in­for­mação cul­tural ao mú­sico. No es­sen­cial, a obra foi es­crita no In­verno de 1912/​13, em Cla­rens, na Suíça. A co­re­o­grafia foi, na­tu­ral­mente, de Ni­jinski que já antes dan­çara o Pe­tru­chka (1911).
A es­treia, ocor­rida em Paris, no Théâtre des Champs-Ely­sées, no dia 29 de Maio de 1913, uma quarta-feira, foi um dos mais tu­mul­tu­osos acon­te­ci­mentos da his­tória da mú­sica, ou até mesmo da his­tória da arte, em geral. O ma­estro era Pi­erre Mon­teux. Não foi pre­ciso es­perar muito para ver o pú­blico co­meçar a agitar-se nas ca­deiras. Bastou a In­tro­dução. Con­fusos e per­tur­bados com o que iam es­cu­tando e vendo os es­pec­ta­dores co­me­çaram a falar uns com os ou­tros, a apupar, a agre­direm-se, a ar­re­mes­sarem ob­jectos para os mú­sicos, fa­zendo com que a dada al­tura os bai­la­rinos em palco dei­xassem de con­se­guir ouvir a or­questra e, nos bas­ti­dores, o pró­prio Ni­jinski não con­se­guisse fazer-se ouvir para dar as en­tradas. Na se­gunda parte, foi pos­sível manter algum si­lêncio. Mas es­tava con­su­mado o es­cân­dalo his­tó­rico. Um es­cân­dalo su­cesso, ou, como me­lhor dizem os fran­ceses, un succès de scan­dale, porque fez com que por todo o lado se fa­lasse da obra, pas­sando Stra­vinsky a ser mun­di­al­mente cé­lebre como «o com­po­sitor da Sa­gração».

A Sa­gração da Pri­ma­vera é uma obra com um ele­vado grau de di­fi­cul­dade para qual­quer or­questra. Logo desde os pri­meiros com­passos. Inicia-se com um curto solo de fa­gote, em que o ins­tru­mento é cha­mado a tocar num re­gisto in­grato, inu­sual, por ser de­ma­siado agudo. O tema, ins­pi­rado numa canção po­pular li­tuana (as raízes po­pu­lares são cons­tantes), prende de ime­diato a atenção. De­pois, vão-se-lhe jun­tando os ou­tros so­pros (de ma­deira e metal). Na In­tro­dução, os pri­meiros 3 mi­nutos, só in­tervêm ins­tru­mentos de sopro. Só de­pois en­tram em acção os ins­tru­mentos de corda (vi­o­linos, vi­olas, vi­o­lon­celos, con­tra­baixos). É exi­gida uma or­questra muito grande. Isso, acres­cido da di­fi­cul­dade de exe­cução fez com que a obra de­mo­rasse a en­trar no re­por­tório ha­bi­tual das salas de con­certo. Pa­recia ser im­pos­sível de exe­cutar.
Chamo a atenção para os bru­tais efeitos acús­ticos, para a acen­tu­ação sin­co­pada, para os jogos de tim­bres, para os con­trastes de so­no­ri­dades ins­tru­men­tais, o uso de pe­sados acordes re­pe­ti­tivos (como acon­tece logo nas pri­meiras in­ter­ven­ções das cordas), con­cre­ti­zando uma grande pu­jança rít­mica e cau­sando, no seu con­junto, um enorme im­pacto au­di­tivo. Jac­ques Ri­vière, que foi um dos pri­meiros a es­crever sobre a Sa­gração, pouco de­pois da agi­tada es­treia, fa­lava de «obra pura», de «re­cusa do su­pér­fluo», porque «tudo aqui é franco, in­tacto, lím­pido e rude». Era um dos pri­meiros a per­ceber que es­tava di­ante de uma ab­so­luta obra-prima. Uma obra-prima que in­cen­tivou a li­ber­dade de ex­pressão ar­tís­tica.


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In­te­grado nas co­me­mo­ra­ções do cen­te­nário do nas­ci­mento de Álvaro Cu­nhal, o con­certo sin­fó­nico de sexta-feira na Festa do Avante! apre­senta um con­junto de peças que se de­sejou li­gadas à sua fi­gura e obra. Para além da­quelas ex­pres­sões em que re­velou uma re­le­vante ca­pa­ci­dade cri­a­tiva – no­me­a­da­mente a pin­tura e a es­crita – o in­te­resse de Álvaro Cu­nhal por ou­tras ex­pres­sões – mú­sica, ci­nema, fo­to­grafia – deu também origem a uma re­ve­la­dora in­ter­venção crí­tica e de re­flexão so­bre­tudo, na sua obra A Arte,o Ar­tista e a So­ci­e­dade (1996). As três obras que com­põem o pro­grama do  con­certo da Festa pro­curam en­con­trar co­e­rência com traços fun­da­men­tais do pen­sa­mento de Álvaro Cu­nhal. Foi assim se­lec­ci­o­nada uma peça de um im­por­tante com­po­sitor por­tu­guês in­jus­ta­mente pouco di­vul­gado, João Do­mingos Bom­tempo, ex­pressão do cons­tante e apai­xo­nado em­penho de Cu­nhal na de­fesa do pa­tri­mónio cul­tural por­tu­guês em todas as suas ex­pres­sões – eru­ditas, po­pu­lares, mu­si­cais, plás­ticas, li­te­rá­rias –, com­po­nente de um pen­sa­mento e de uma in­ter­venção em que a de­fesa do pa­tri­o­tismo e dos in­te­resses do País e do povo con­si­tuiram uma linha ful­cral. Por outro lado, a paixão do autor de Até Amanhã, Ca­ma­radas pela obra de Ludwig van Be­ethoven era co­nhe­cida, não sendo se­gu­ra­mente sur­pre­e­dente que esse par­ti­cular apreço en­vol­vesse não apenas a be­leza da mú­sica como igual­mente o com­pro­met­mento do com­po­sitor com a Li­ber­dade, outro ele­mento con­dutor de uma vida de in­que­bran­tável re­vo­lu­ci­o­nário que foi a de Álvaro Cu­nhal. A quem não seria se­gu­ra­mente in­di­fe­rente, antes cons­ti­tuiria se­guro mo­tivo de or­gulho, que fossem por­tu­gueses a or­questra – a Sin­fo­ni­etta de Lisboa –, o ma­estro – Vasco Aze­vedo –, e o so­lista – Pedro Bur­mester – que no Palco 25 de Abril darão corpo a esta ho­me­nagem. En­cerra o con­certo um outro cen­te­nário, o da es­treia de A Sa­gração da Pri­ma­vera. A mo­der­ni­dade, o an­seio e vigor cri­a­tivo e ino­vador da obra de Stra­vinsky de muitas formas acom­pa­nham esse im­pulso que fez do sé­culo pas­sado o início e o con­cre­tizar de muitas es­pe­ranças e vi­tó­rias. Foi po­lé­mica e atri­bu­lada a afir­mação da Sa­gração, mais um exemplo que o fu­turo não nasce com sim­pli­ci­dade e sem di­fi­cul­dades. Por isso con­ti­nu­amos e con­ti­nu­a­remos fazer de cada dia mais um dia de cri­ação de Pri­ma­veras.