Miséria, disse ela
Foi na passada quarta-feira, 10, em «Discurso Directo», programa interactivo da TVI24 todos os dias úteis gerido com talento diplomático pela jornalista Paula Magalhães. Estava eu já prestes a sair de casa, pois que a vida quotidiana não pode resumir-se apenas a um televisor e uma cadeira diante dele, mas como que com as orelhas ainda viradas para os sons que a televisão enviava. E ouvi então uma senhora telespectadora cujas palavras me fizeram voltar atrás e prestar atenção: a criatura lamentava a actual situação do País, é claro que não sem motivos, e repetia a cantiga já conhecida mas cada vez mais na moda segundo a qual «isto precisava era de um outro Salazar». Porque, segundo ela, Salazar seria o homem perfeito para a actual situação do País como já o havia sido nos saudosos tempos do seu mando; porque nele concorriam todas as virtudes necessárias à «salvação nacional» de que tanto se fala agora; porque estava isento dos vícios que caracterizam os «políticos» actuais. Tanto e de tal modo que, segundo as palavras da boa senhora, Salazar «morreu na miséria». Esta última informação impressionou-me especialmente por bem me lembrar de que o defunto estadista viveu a maioria do seu tempo de vida por conta do Estado, com cama, mesa, roupa lavada, transportes, férias à beira-mar e outras inevitáveis despesas pagas pelo dinheiro do povo (e assim poupado à necessidade de frequentar as casas de prego que então floresciam de Norte a Sul), pelo que não atinei com a fresta por onde a miséria se terá infiltrado no seu quotidiano final. Nem sequer creio que tenham saído do bolso do ditador os proventos dos especialistas de primeiríssima linha que dele cuidaram nos dois anos que decorreram entre a mítica queda da cadeira e o desenlace final, bem como os custos decerto elevados desses últimos meses. Entenda-se: é compreensível que a lenda da «morte na miséria» seja adequada ao projecto de «canonização cívica» que animará muitos dos devotos do defunto, mas convém não exagerar. Até porque a evidência de uma mentira pode constituir-se em pista para a descoberta de outras imposturas.
Miserável, é certo
Dizia eu, pois, que estava de saída quando a voz da crédula senhora me reteve, e o caso é que não saía para um sítio qualquer nem por um motivo menor: ia a casa de um excelente amigo e camarada com a intenção de lhe impor uma espécie de tosca comemoração pelos cinquenta anos, nesse exacto dia completados, da sua prisão pela PIDE ocorrida a 10 de Julho de 1963. Esse foi, é claro, um caso entre muitos, milhares deles, de portugueses e portuguesas presos por uma polícia «especial» que recebeu formação e treino da Gestapo hitleriana, condenados por um tribunal não menos «especial» e não menos infame depois de submetidos a torturas de diverso grau que algumas vezes conduziram à morte e que sempre deixaram nos torturados vestígios físicos ou psíquicos para o resto da vida. Não faço à Senhora Dona Telespectadora a injustiça de sequer suspeitar de que ela nunca ouviu falar disto apesar de se tratar de assunto pouco falado. Admito, isso sim, que não tenha sido suficientemente informada das fomes, das mortes por doenças não tratadas, da espessa camada de analfabetismo e ignorâncias, do medo da omnipresente espionagem policiesca, da caça aos que se atreviam a lutar pela dignidade, que conjuntamente compunham o cenário quotidiano do país onde o santinho da sua devoção mandava quanto lhe apetecia. Eram os anos em que a mera obtenção de um emprego no Estado ou mesmo numa empresa privada de alguma dimensão dependia de informação «abonatória» da polícia política, em que correspondência privada era violada e em que o simples pedido de recenseamento nos cadernos eleitorais dependia de informação prestada pela PIDE e era rejeitado em caso de parecer desfavorável. E isto para não falar da guerra injusta, cruel e inútil, mantida com o objectivo de conservar o domínio colonial de territórios que legitimamente pertenciam aos povos autóctones mantidos em servidão, quando não numa factual escravatura. Isto e o muito mais que aqui não cabe era o país do santinho que não, minha senhora, não morreu na miséria. Mas que de quem se pode dizer, sim, que foi uma figura verdadeiramente miserável.