A traça subterrânea: IPSS, ONG e Parcerias

Jorge Messias

«As par­ce­rias com as IPSS são fun­da­men­tais. Porque o Es­tado não pode ab­dicar de muitas das suas res­pon­sa­bi­li­dades que são ina­li­e­ná­veis mas, para as ga­rantir, tem de se saber des­ligar da­quelas que ou­tros prestam de forma mais efi­ci­ente» (Pedro Mota So­ares, mi­nistro da So­li­da­ri­e­dade e Se­gu­rança So­cial, na Fun­dação Mil­le­nium BCP, em 27 Abril 2013).

 

«O Go­verno tem vindo a de­sen­volver me­didas de que o mi­nistro deu exem­plos: a pro­cura da sus­ten­ta­bi­li­dade fi­nan­ceira das IPSS, através da sua isenção de IRC e do re­em­bolso de 50% do IVA; o re­forço em 16% das verbas de acção so­cial para um valor total de 254 mi­lhões de euros; o pro­to­colo as­si­nado entre o go­verno e cre­ches ca­tó­licas; a cri­ação de um Plano de Acção So­cial com um or­ça­mento de 630 mi­lhões de euros; o pro­to­colo as­si­nado, em 2011, entre o Go­verno e as IPSS; a ma­xi­mi­zação das ca­pa­ci­dades ins­ta­ladas em lares e cre­ches ca­tó­licas; a cri­ação de um Plano de Emer­gência Ali­mentar, ga­rante de duas re­fei­ções com­pletas di­rectas por pessoa; e a atri­buição da ca­pa­ci­dade de gestão e de ino­vação das IPSS para qua­li­ficar re­cursos hu­manos» ( idem, ibidem).

 

 

A névoa que se le­vanta à volta de tudo isto co­meça logo na lin­guagem usada na pró­pria co­mu­ni­cação con­tro­lada pelo poder cen­tral e à luz da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica.

Ins­ti­tu­ci­o­nal­mente, a acção so­cial de­veria estar aberta a dois agentes prin­ci­pais: ao Es­tado, como pri­meiro actor; e à ini­ci­a­tiva pri­vada, num de­sem­penho com­ple­mentar de so­li­da­ri­e­dade. O Es­tado seria neu­tral re­la­ti­va­mente às ac­ções dos pri­vados; e, estes, po­de­riam agir li­vre­mente nas di­fe­rentes áreas da co­mu­ni­dade, em­bora cum­prindo as leis.

O que está a acon­tecer é bem di­fe­rente. O Es­tado ne­o­li­beral fra­gi­liza cons­ci­en­te­mente todas as es­tru­turas de apoio ins­ti­tu­ci­onal às suas fun­ções so­ciais; le­gisla a fim de aplanar ca­mi­nhos aos in­te­resses pri­vados; e des­monta sis­temas pú­blicos de in­ter­venção em sec­tores es­sen­ciais como os do em­prego, do en­sino, da saúde, etc. Te­nhamos pre­sentes me­didas go­ver­na­men­tais re­centes, tais como a de­vo­lução dos hos­pi­tais às Mi­se­ri­cór­dias, o fi­nan­ci­a­mento ofi­cial do en­sino pri­vado ou o plano de emer­gência ali­mentar nos moldes de mer­cado em que fun­ciona. O Es­tado por­tu­guês ca­pi­ta­lista in­ten­si­fica, si­mul­ta­ne­a­mente, a sua ofen­siva cujo prin­cipal ob­jec­tivo é ace­lerar a con­cen­tração das for­tunas e em­po­brecer as po­pu­la­ções, en­quanto re­forma a velha classe média.

Os re­sul­tados estão à vista. Há mais de um mi­lhão de de­sem­pre­gados, de um a três mi­lhões de po­bres e a ava­lanche das fa­lên­cias de em­presas, fa­mí­lias e pes­soas não cessa de crescer, bem como a in­flação. A par do au­mento da dí­vida pú­blica, de toda a es­pécie de con­tri­bui­ções sobre os mais po­bres ou do alar­ga­mento cri­mi­noso do fosso entre os in­te­resses dos ricos e os re­cursos dos po­bres por­tu­gueses. Por gi­gan­tescas que fossem as verbas eu­ro­peias atraídas por estas po­lí­ticas, elas nada mu­da­riam às si­tu­a­ções de rup­tura que en­fren­tamos: todos estes mon­tantes fi­nan­ceiros gi­gan­tescos vêm di­rec­ta­mente en­de­re­çados às for­tunas e às suas cen­trais. Au­mentar a dí­vida man­tendo as mesmas po­lí­ticas é apro­fundar o abismo entre po­bres e ricos, pôr em evi­dência que o Ca­pi­ta­lismo, como sis­tema, é in­capaz de dar res­posta ao caó­tico es­tado de coisas criado pelas ope­ra­ções es­pe­cu­la­tivas.

A hi­e­rar­quia da Igreja sabe que tudo isto é ver­dade. Con­tra­ri­a­mente ao que al­guns de nós possam sus­peitar, o go­verno da Igreja tem mi­nu­ciosa in­for­mação do que se passa no mundo e é cons­ti­tuído por es­pe­ci­a­listas com longa for­mação nas mais com­plexas ma­té­rias. No en­tanto, os mi­la­gres não estão ao seu al­cance.

Car­deais, bispos, leigos das fi­nanças e ca­te­drá­ticos ca­tó­licos, bem per­ce­be­riam que numa in­son­dável crise mun­dial, a Igreja se afir­masse como uma firme de­fen­sora dos po­bres. Que bra­dasse aos quatro ventos um com­pleto de­sin­te­resse evan­gé­lico pelo di­nheiro. Ou que sur­gisse a luz do dia para dar de comer aos es­fo­me­ados e vender os fa­bu­losos anéis que tem nos dedos.

Impor-se-ia, ao con­trário do que afirmam os fun­da­men­ta­listas be­atos, que a Igreja as­su­misse uma ati­tude po­lí­tica clara, a nível do seu tão ba­da­lado hu­ma­nismo cristão: a ética re­li­giosa, no bom sen­tido, impõe o fim da men­tira e luta pela jus­tiça so­cial. A dou­trina é isto ou nada é.

Es­tamos no fim dos tempos. Chegou a hora da ver­dade!



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