Os executados

Correia da Fonseca

A in­for­mação é-nos dada dis­cre­ta­mente, em pa­la­vras breves quando nos é pres­tada pelo apre­sen­tador do tele-no­ti­ciário, o que aliás não é fre­quente, em frase que atra­vessa o ro­dapé do ecrã de mis­tura com ou­tras no­tí­cias: tem vindo a au­mentar o nú­mero de sui­cí­dios em Por­tugal desde que o Go­verno se prestou a em­purrar muitos mi­lhares de por­tu­gueses para a po­breza e a an­gústia, quando não para a in­di­gência mal dis­far­çada e o de­ses­pero. É claro que para re­la­ci­onar com um mí­nimo de rigor as al­cu­nhadas «me­didas de aus­te­ri­dade» com as de­sis­tên­cias da vida não há dados con­cretos que sempre se­riam di­fí­ceis de obter mesmo que os «po­deres pú­blicos» não es­ti­vesse mo­bi­li­zados para im­pedir essa ave­ri­guação. Mas temos olhos para ver, ou­vidos para ouvir, ca­be­ci­nhas para en­tender, e aqui bem po­de­riam caber os dois versos de Sophia que de tantas vezes ci­tados já dis­pensam evo­cação li­teral. O âmago da questão situa-se no facto de a acção do Go­verno Passos Co­elho ter feito o bas­tante para que mi­lhares de por­tu­gueses te­nham per­dido o em­prego, a ha­bi­tação, os apoios so­ciais e, fi­nal­mente, o alento. É uma es­pécie de versão muito mo­de­rada, é certo, de ge­no­cídio, com os man­da­tá­rios da classe do­mi­nante a co­lo­carem os do­mi­nados pe­rante a es­colha entre a po­breza, que in­clui a acei­tação de uma ou di­versas formas de es­mola que se dis­si­mulam sob o pseu­dó­nimo de «so­li­da­ri­e­dade» (como se a so­li­da­ri­e­dade efec­tiva e sau­dável não fosse coisa bem di­fe­rente) e a fuga pela emi­gração, se tanto for pos­sível. O ter­rível, porém, é a va­ri­ante que as tais dis­cretas no­tí­cias nos trazem: que tem vindo a crescer essa forma si­nistra e ir­re­pa­rável de emi­gração que é o sui­cídio.

Muita di­fe­rença faz

Sabe-se que a morte é o fruto ma­cabro de todas as guerras, mas não se es­pe­raria que no Por­tugal pós-Abril a guerra de classes im­pli­casse a che­gada da morte para al­guns, não se sabe quantos, talvez para muitos. De resto, bem se sabe que não há provas disso, que não está es­ta­be­le­cida uma re­lação de causa e efeito entre a bru­teza de uma dita «aus­te­ri­dade», pa­lavra cujo uso na cir­cuns­tância não passa de uma im­pos­tura vo­ca­bular, e os que, de­ses­pe­rados, num certo mo­mento mais negro pre­fe­riram a morte pelas pró­prias mãos à agonia de verem o seu lar per­dido, os fi­lhos cri­vados de pri­va­ções, a es­pe­rança des­feita. Nunca a te­le­visão teve a co­ragem, ou talvez a im­pru­dência pe­rante a even­tu­a­li­dade do efeito de con­tágio, de nos dar a ver uma re­por­tagem que nar­rasse os su­ces­sivos mo­mentos de uma an­gústia que de­sem­boca num úl­timo mo­mento de de­ses­pero. A te­le­visão fala-nos de al­guns hor­rores, e em certos casos até pa­rece com­prazer-se com os re­latos: os fi­lhos que matam os pais, os adultos que vi­olam cri­anças, os aviões não tri­pu­lados que as­sas­sinam sem risco, coisas assim, mas cala-se pe­rante os que es­co­lhem a forma mais de­fi­ni­tiva da de­sis­tência pe­rante a vi­o­lência, e ad­mite-se até que nem seja le­gí­timo ou ra­zoável re­provar-lhe a pru­dência. Há, porém, um as­pecto dessas tra­gé­dias que, além do mais, é pre­ciso en­tender: esses que optam pela morte no quadro de uma opressão mul­tí­moda a que já não podem ou não sabem re­agir são o equi­va­lente aos que, no con­texto de ou­tras guerras e de ou­tras opres­sões mais san­grentas mas talvez não tão fri­a­mente cruéis, são exe­cu­tados di­ante de um muro de fu­zi­la­mentos. Também por isso, pro­va­vel­mente, estas exe­cu­ções são si­len­ci­adas, dis­sol­vidas na in­cer­teza das causas que mo­ti­varam a de­fi­ni­tiva ca­pi­tu­lação: é quase tra­di­ci­onal que os ne­vo­eiros possam ser ali­ados dos as­sas­sinos, in­cluindo os que o são por mão alheia. E é pe­rante tudo isto, di­ante da im­pe­riosa ne­ces­si­dade de re­cusar a de­sis­tência e con­vocar a re­sis­tência, que ape­tece lem­brar os versos do poeta João Ca­bral de Melo Neto, bra­si­leiro e ca­tó­lico: «(…) muita di­fe­rença faz / entre lutar com as mãos / e aban­doná-las para traz».




Mais artigos de: Argumentos

Alegria e reflexão

Para quem se pretende marxista, os resultados eleitorais são, também e sobretudo, uma forma de conhecer (ou de aperceber) o «estado das massas», uma espécie de termómetros. O que não quer dizer que se menospreze o seu efeito na política em sentido restrito (e pobre,...

Policiais gastronómicos

No variado mundo da literatura policial, que é um género considerado menor, mas cuja classificação recuso totalmente, existem vários personagens que no decurso da acção comem e bebem. Nos norte-americanos (a maioria) comem coisas como pão com bacon e ovos...

A traça subterrânea: IPSS, ONG e Parcerias

«As parcerias com as IPSS são fundamentais. Porque o Estado não pode abdicar de muitas das suas responsabilidades que são inalienáveis mas, para as garantir, tem de se saber desligar daquelas que outros prestam de forma mais eficiente» (Pedro Mota Soares, ministro da Solidariedade...