Camarada Álvaro

Correia da Fonseca

Ao longo dos anos, têm vindo como que a des­filar nos ecrãs dos nossos te­le­vi­sores per­so­na­li­dades dos mais di­versos mé­ritos no mero plano da co­mu­ni­cação pela TV. A al­gumas delas, de tão me­dío­cres e iná­beis na re­lação com as câ­maras e com os mi­cro­fones, mais va­lera terem fi­cado em casa, o que teria sido de pro­veito para si pró­prias, para os pro­gramas em que par­ti­cipam e para os te­les­pec­ta­dores em geral. Ou­tras, porém, foram ou são una­ni­me­mente re­co­nhe­cidas como no­tá­veis fi­guras da co­mu­ni­cação te­le­vi­siva, e será ocioso ins­crever aqui os nomes de três ou quatro exem­plos, aliás fre­quen­te­mente ci­tados, dessa es­pe­cí­fica ca­pa­ci­dade. Pa­rece-me, porém, que ne­nhuma delas como Álvaro Cu­nhal. Desde logo, ainda que não so­bre­tudo, porque a pre­sença de Álvaro Cu­nhal nos ecrãs, quer no âm­bito de re­por­ta­gens quer de en­tre­vistas, muitas vezes im­pli­cava de­frontar um certo há­lito de hos­ti­li­dade co­e­rente com o an­ti­co­mu­nismo mais ou menos mi­li­tante que im­pregna os sec­tores do­mi­nantes da so­ci­e­dade por­tu­guesa. Prin­ci­pal­mente, porém, porque em Álvaro Cu­nhal a jus­teza do dis­curso, a cla­reza com que o ex­punha e o brilho de fór­mulas usadas, tudo isto adi­ci­o­nado à sua ca­pa­ci­dade para sus­citar em­pa­tias, sempre ou quase sempre con­du­ziam os seus in­ter­lo­cu­tores se não à ca­pi­tu­lação na área das ideias e das con­vic­ções, pelo menos à ren­dição no plano do con­tacto pes­soal. Álvaro Cu­nhal sorria-se, e o ecrã como que se ilu­mi­nava. Álvaro Cu­nhal usava uma fór­mula verbal sin­té­tica mas ex­pres­siva, não poucas vezes tem­pe­rada pela ironia que é uma forma es­pe­ci­al­mente sa­bo­rosa de in­te­li­gência, e a me­mória guar­dava-lhe as pa­la­vras. Um bom exemplo disto é aquela breve frase pro­fe­rida no de­curso de um de­bate Cu­nhal-So­ares ha­vido em 75 nos es­tú­dios da RTP e que a es­tação pú­blica com re­la­tiva frequência re­a­pre­senta: a já cé­lebre frase «- Olhe que não, doutor, olhe que não!». O cru­za­mento da ironia com um certo laivo de sabor po­pular re­sul­taram aqui num re­forço da efi­cácia, e ainda hoje a frase não só é lem­brada como até re­pe­tida num quadro também iró­nico que con­sinta a ci­tação.

O elogio da bre­vi­dade

Perdoe-se-me por me atrever hoje, contra as boas re­gras e o mero bom senso, a pre­texto da ex­cep­ci­o­na­li­dade do tema hoje abor­dado não apenas nestas duas co­lunas mas em todo o nosso jornal, re­gistar aqui as duas únicas con­versas que Álvaro Cu­nhal teve co­migo. Uma delas ocorreu quando An­tónio Borga, então di­rector de «o diário», de­cidiu dis­pensar a minha co­la­bo­ração, creio eu que de­pois de duas cró­nicas mi­nhas que não lhe terão caído bem. Álvaro Cu­nhal teve então uma atenção para co­migo que muito me sen­si­bi­lizou: chamou-me à So­eiro Pe­reira Gomes e aí me ex­primiu o seu de­sa­cordo com o des­pe­di­mento. Uma outra con­versa, essa mais breve, acon­te­cera pouco tempo de­pois do 25 de No­vembro de 75 no de­curso de um pe­queno be­be­rete com que apa­ren­te­mente o então em­bai­xador de França em Lisboa terá que­rido sig­ni­ficar al­guma sim­patia para com os que na­quela data ha­viam saído com uma certa (e aliás ina­de­quada) eti­queta de der­ro­tados: o em­bai­xador, que es­ti­vera em San­tiago do Chile em Se­tembro de 73, disse-nos então que nem com o golpe de Pi­no­chet e o terror cri­mi­noso que se lhe se­guiu ha­viam sido eli­mi­nadas todas as con­quistas con­se­guidas du­rante a pre­si­dência de Al­lende, e contou-nos isto com a óbvia in­tenção de re­forçar o nosso alento. Foi, pois, nesse en­contro que Álvaro Cu­nhal me falou, di­zendo-me com óbvia ge­ne­ro­si­dade que apre­ciava as mi­nhas cró­nicas «so­bre­tudo porque são breves». Não in­ter­pretei a fór­mula como sig­ni­fi­cando que quanto menos eu es­cre­vesse, me­lhor, o que de­certo não cor­res­pon­deria à in­tenção de Álvaro Cu­nhal, e guardei a ob­ser­vação como um elogio ines­ti­mável. Também como uma es­pécie de lição im­plí­cita e quase in­vo­lun­tária, con­tida no aplauso à bre­vi­dade e à pro­cura da efi­cácia em de­tri­mento da even­tual ten­tação do alon­ga­mento pro­lixo. Essa sin­té­tica lição, guardei-a bem guar­dada e até hoje tenho que­rido ser-lhe fiel dentro das cir­cuns­tân­cias que em grau maior ou menor tornam pos­sível essa fi­de­li­dade. É uma es­pécie de grata dí­vida pes­soal que tenho para com Álvaro Cu­nhal. Es­pero que me seja per­doado o ex­cesso de ter vindo hoje lembrá-la aqui.



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