A multiplicação

Correia da Fonseca

Graças aos bons ofí­cios da te­le­visão e não só, desde há muito se sabe que o Go­verno e o se­nhor Pre­si­dente da Re­pú­blica andam se­ri­a­mente pre­o­cu­pados com a re­dução po­pu­la­ci­onal do País: os por­tu­gueses são cada vez menos, so­bre­tudo os que ainda ha­bitam o rec­tân­gulo que se­gundo Pessoa é o rosto com que a Eu­ropa fita a Amé­rica, e todos os es­tudos pre­vêem que essa si­tu­ação se agrave nos tempos fu­turos. As ra­zões que fun­da­mentam tais pre­o­cu­pa­ções estão longe de ser ób­vias, e por isso de­ve­riam talvez ser bem ex­pli­cadas à po­pu­lação ou, talvez di­zendo me­lhor, ao que resta dela, mas pa­rece que pelo menos uma delas tem a ver com as ca­pa­ci­dades pro­du­tivas no fu­turo, su­pondo-se na­tu­ral­mente que para as ta­refas de pro­dução vai con­ti­nuar a ser ne­ces­sária al­guma mão-de-obra. Para além disto, é ad­mis­sível que o Go­verno (e com ele, como sempre, também o se­nhor Pre­si­dente) en­care a pos­si­bi­li­dade de vir a ser in­ten­si­fi­cada a ex­por­tação de pes­soas, aliás já em in­tenso curso, como é sa­bido, por­ven­tura acre­di­tando que fu­turas re­messas da emi­gração en­grossem de tal modo que tornem fa­vo­rável a ba­lança de pa­ga­mentos que teima em ser-nos des­fa­vo­rável. Ora, para este pos­sível e pro­vável ob­jec­tivo a longo prazo é ne­ces­sário que desde já se vá pro­ce­dendo à ade­quada se­me­a­dura, di­gamos assim, quer dizer, à en­co­menda vul­tosa de bebés por­tu­gueses. Além do mais, será uma obe­di­ência à ori­en­tação bí­blica que em re­motos tempos desceu do alto: «Crescei e mul­ti­plicai-vos!», foi dito numa al­tura em que ainda não eclo­dira a pri­meira crise fi­nan­ceira. Para essa ta­refa pa­trió­tica de mul­ti­pli­cação na con­ti­nui­dade con­vocam-nos o Go­verno e o PR com tão maior le­gi­ti­mi­dade quanto é certo que, por sua parte, já a cum­priram, ainda que mo­de­ra­da­mente.

Sabor a hi­po­crisia

Acon­tece, porém, que o cum­pri­mento dessa ta­refa não está sendo fácil, bem pelo con­trário, o que até o Go­verno dá si­nais de saber, ele, que pa­rece saber tão pouco do que se passa ao nível do po­voléu «pi­egas». Assim, se­gundo nos contou a te­le­visão, a co­missão en­car­re­gada pelo Go­verno de re­formar (para me­lhor, já se sabe!) a tri­bu­tação pelo IRS, está de­ci­dida a in­tro­duzir normas que be­ne­fi­ciem os ca­sais que te­nham mais fi­lhos. Tratar-se-á, assim, de en­co­mendar cri­anças para pagar menor im­posto, e é claro que já se ima­gina o enorme in­cre­mento que tão au­da­ciosa me­dida vai de­sen­ca­dear no plano da na­ta­li­dade. Não obs­tante, talvez seja ade­quado re­cordar que restam ou­tras di­fi­cul­dades ao de­se­jado pro­cesso de mul­ti­pli­cação na­ci­onal. Que nin­guém quer en­co­mendar fi­lhos para que, de­cor­ridos uns breves anos, eles passem dias ex­te­nu­antes e vãos em busca de um em­prego que não en­con­tram, ou se acres­centem à já lon­guís­sima lista de emi­grantes para o Lá-Longe, ou res­valem para um de­ses­pero que os co­loca à beira de uma qual­quer forma de mar­gi­na­li­dade. Que nin­guém quer ter fi­lhos para a pe­núria, para a frus­tração, para um País que lhes ne­gará um tecto, um posto de tra­balho e as es­pe­ranças mí­nimas. Ou, di­zendo-o talvez de um modo mais amplo, que nin­guém quer ter fi­lhos, nem aliás ver­da­dei­ra­mente pode tê-los, num País que é man­dado por um Go­verno como o que por des­graça ainda está no poder: um Go­verno que trans­pira desdém pela gente que lhe caiu nas mãos, que não quer saber das fomes, das do­enças, dos ne­grumes di­versos que as­solam o País. É sobre este quadro, que só pode pecar por de­feito, que cai agora este pro­jecto de trans­formar os fi­lhos em co­ci­entes ten­dentes a in­duzir al­guma re­dução no IRS, pro­vi­dência com sabor a hi­po­crisia e nada pro­pi­ci­a­dora de mí­nimas me­lho­rias do pa­drão de vida dos ca­sais com fi­lhos. Em ver­dade, um Go­verno que não fosse de agressão ao seu pró­prio povo as­se­gurar-lhe-ia viver de acordo com as suas ne­ces­si­dades fun­da­men­tais, to­mando este de­sígnio como regra e pri­meira jus­ti­fi­cação da sua per­ma­nência no poder. E, con­se­guido esse fun­da­men­ta­lís­simo ob­jec­tivo, não se­riam ne­ces­sá­rios ou­tros es­tí­mulos, fis­cais ou não: os por­tu­gueses que­re­riam viver como é do seu na­tural di­reito e en­car­regar-se-iam de travar o de­crés­cimo po­pu­la­ci­onal que, pelos vistos, tanto apo­quenta al­guns que nada fazem para travá-lo.




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