Depois do desemprego

Correia da Fonseca

Não importa qual dos canais deu a informação: terá sido qualquer deles, um dos quatro ditos gratuitos, um dos distribuídos por cabo, ou ainda porventura todos eles, pois já nenhum dos canais portugueses se empenha na tarefa inútil de dissimular ou omitir as evidentíssimas violências que o Governo pratica sobre o povo que o sofre. O certo é que se falava desse gigantesco escândalo que é a paralisia do aparelho judicial português, prova clamorosamente evidente de que pelo menos nesse fundamental sector não há regular funcionamento das instituições, longe disso, sem que o senhor Presidente da República, sempre complacente e/ou distraidíssimo, extraia desse facto as consequências que ele devia impor. E, é claro, não pense ninguém que isso da paralisia dos tribunais é caso que só importa aos delinquentes e aos seus advogados, sobretudo aos implicados em processos de delinquência menor pois que aos outros, aos de grande porte, é comum que a voz do povo diga que estão a salvo de incómodos e, como se sabe, também se diz que a voz do povo é voz de Deus, pelo que deve ser verdade. Há já bem mais de um mês que a televisão nos põe diante de imagens de processos amontoados aparentemente a esmo, de contentores promovidos à condição nobre de instalações de tribunais, e não se pressente sequer que gente do chamado poder Executivo sinta solidariamente a vergonha insuportável por uma situação desta. O cúmulo foi, como bem se sabe, a senhora que detém a pasta da Justiça, ou melhor, a quem a pasta da Justiça foi levianamente confiada, vir à TV com aquele discurso espantoso em que pediu desculpa pelo incómodo, sem mais. Presumindo abusivamente de que a desculpa lhe seria concedida pelo País amputado de uma função fundamental.

e a cumplicidade

Repete-se, pois, que não importa saber qual o canal que informou, importando muito, isso sim, reter a informação e reflectir um pouco sobre a sua exemplaridade. Trata-se de trabalhadores despedidos, e quanto a essa situação não será excessivo presumir que pode tratar-se de um elevado número de cidadãos, pois bem se sabe que os despedimentos continuam a percorrer o País como uma epidemia sem controlo. Mas trata-se de casos especiais de despedimento, quando este chega acompanhado por circunstâncias ainda agravantes: quando aos trabalhadores a quem na prática passou a ser negado o direito ao trabalho também é negada pela entidade patronal a documentação indispensável à obtenção do subsídio de desemprego que, embora magro e de duração breve, é a atenuação possível dos enormes males que o desemprego implica, porventura o adiamento da miséria total. Não terá sido explicitado o motivo dessa recusa: afundamento total dos serviços administrativos da(s) empresa(s), fuga das administrações, irresponsabilidade e irresponsabilização, pura maldade, qualquer outra. Uma coisa é certa: aos trabalhadores assim tratados resta, na defesa dos direitos que lhes assistem, o recurso à via judicial, isto é, aos tribunais, onde a límpida razão que lhes assiste lhes garantiria um mínimo mas primeiro sucesso. E então esbarram com as consequências da leviandade de que a senhora ministra da Justiça deu fragorosa prova: os tribunais não respondem, estão como que destruídos, como que atingidos por um sismo de elevadíssimo grau, afundados num caos que os coloca numa espécie de inexistência. Existem, isso sim, os trabalhadores e as suas famílias, tal como existem em assustador crescendo as carências que o desemprego implica e que os dias sem quaisquer recursos multiplicam. Mas do horizonte imediato desapareceu até a perspectiva dessa esperança minúscula que seria um caminho judicial possibilitador de um remedeio para a carência documental que se acrescentou ao despedimento. Nada, enfim. Só a prosápia da ministra impune, as suas declarações cegas para a realidade, a falta de coragem que a impede de tirar as óbvias consequências que o escândalo devia impor-lhe. E a cumplicidade objectiva de quem a mantém num lugar a que ela perdeu o direito.



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