Obstáculos, omissões e ilusões

O PCP discordou desde o primeiro momento que a visão de PSD, mas também em boa medida de PS e CDS – a construção de um monstro moral, o sacrifício de um banqueiro caído em desgraça –, passasse, independentemente das grandes responsabilidades reais e aliás bem descritas e identificadas de Ricardo Salgado, como forma única de intervenção, para assim assegurar a salvação de responsáveis políticos vários e da imagem do sistema financeiro privado em geral. Tal divergência não poderia deixar de estar presente no momento das votações sobre um Relatório que, apesar da sua riqueza, continua a branquear uma componente fundamental das responsabilidades: a política.

Também por isso, o PCP votou contra o Relatório final (embora votando favoravelmente o capítulo sobre o «apuramento dos factos»), numa votação que contou com o voto a favor do PSD, do CDS e do PS e a abstenção do BE.

Se é verdade que o Relatório apresentado faz uma descrição exaustiva de factos e de práticas legais e ilegais, bem como aponta falhas e deficiências mais ou menos circunstanciais no sistema de supervisão, não deixa de ser verdade que é exclusivamente nesses pilares que o Relatório faz assentar as suas conclusões.

O Relatório ignora que o Banco Espírito Santo e a Tranquilidade foram entregues à família Espírito Santo no processo de restauração capitalista e monopolista desencadeado contra as conquistas da Revolução de Abril. É sintomático que o relator consiga mesmo aceitar um vasto conjunto de propostas de alteração apresentadas pelo Grupo Parlamentar do PCP – o que se saúda e valoriza – mas não integre quaisquer considerações sobre o papel de sucessivos governos, PS, PSD, com ou sem CDS, no que toca à consolidação e promoção do Grupo GBES/GES.

Ora tal apagamento de responsabilidades não é compatível, na perspectiva do PCP, com um relatório de Comissão de Inquérito que visa precisamente apurar o conjunto dos actos públicos e políticos que originaram a situação que agora se deve relatar. A entrega da Tranquilidade em 1990 e depois do BES, em 1991, à família, pela mão do governo PSD de Cavaco Silva como primeiro-ministro e de Mário Soares como Presidente da República, marcam um momento determinante para o que viria a suceder. Tal como a família adquiriu o Grupo sem capitais, com financiamento da Caixa Geral de Depósitos e com apoio do Crédit Agricóle, angariado por Mário Soares, o Grupo veio a ser constituído como império precisamente da mesma forma, sobre crédito e dívida, predação dos sectores produtivos, benefícios fiscais e especulação financeira.

O Relatório ignora que o BES foi entregue à família e financiado com apoios públicos e que o BES – apenas o BES – distribuiu quatro mil milhões em dividendos ao longo de pouco mais de duas décadas, fazendo deles um usufruto estritamente privado, apesar de ter sido socializado o prejuízo resultante.

 



Mais artigos de: Em Foco

A queda de um símbolo<br>da política de direita

Perceber o que se passou no caso BES/GES implica ir à génese do banco, como consolidou posições e alargou a sua esfera de interesses durante o fascismo, o seu desenvolvimento, os fluxos e refluxos, a nacionalização em 75, a privatização...

Marcha Nacional

A CDU apela à participação, no dia 6 de Junho, em Lisboa, na Marcha Nacional «A força do povo». A iniciativa conta com o apoio de conhecidas figuras da vida nacional, que vão desfilar do Marquês de Pombal aos Restauradores.  

Uma relação promíscua

Fundado em 1820 pelos filhos de José Maria do Espírito Santo Silva, a partir da casa bancária que este havia fundado em 1911 (J. M. Espírito Santo), o Banco Espírito Santo (BES) funde-se em 1937 com o Banco Comercial de Lisboa (BCL) e assume a...

PCP abre o caminho

Desde Junho de 2013 que o PCP vinha alertando o Governo e o Banco de Portugal para a situação do BES e do GES. Aliás, numa audição do Governador do Banco de Portugal, questionou directamente a idoneidade de Ricardo Salgado. E tinha razões para o fazer...

Um governo capturado<br>pelos interesses dos poderosos

A forma como o Governo PSD/CDS não só não cumpriu o seu dever de ser garante último da estabilidade financeira como contribuiu para empenhar recursos públicos na salvação de uma instituição, socializando prejuízos e funcionando como agente de limpeza...

O todo poderoso capital

A predação do capital produtivo pelo capital bancário, resultado directo do desenvolvimento do capitalismo, tornou cativas das instituições de crédito praticamente todas as actividades económicas, independentemente da sua dimensão. As...

A urgência da alternativa política

O momento é o da assumpção de uma política de recuperação da soberania política e económica, colocando o sistema financeiro como instrumento dessa política. É inaceitável que o esforço colectivo e o...